Tristeza Solene, o livro do ano
julmar, 11.12.17
Conheci o autor acerca de trinta e seis anos, colegas que fomos, no oficio de professores de Filosofia, na Escola Secundária Raínha Santa, no Porto. Até poderíamos continuar a trabalhar juntos (Formação de professores) não fosse o meu impedimento burocrático da minha condição de professor não efectivo. Faz algum tempo descobri o Aires no Facebook, a maior rua do mundo e soube da sua condição de músico e de escritor. Assisti ao lançamento do seu livro na Casa da Cultura de Paredes. Acabei agora de ler o livro, e fico sem palavras para dizer o quanto fiquei maravilhado pela construção desta obra. Soube-me bem reencontrar um período que me é querido e dois autores - Giordano Bruno e Nicolau de Cusa - para os quais me despertou o saudoso professor Júlio Fraga. É preciso muita imaginação e talento para contar várias histórias numa história (o recurso ao itálico, ao negrito...). Enfim, um livro de leitura difícil e como tal há-de ter poucos leitores, mas bons. Sobre a escrita, nada como saborear este extrato do capítulo V:
Da profunda escuridão noturna irrompe Bruno iluminado, anda comigo, digo-lhe que não e ele insiste, que a alma da cidade é noite sem fim, que a noite é uma avenida por onde caminhamos espetros, que habitar a noite é devorá-la e cravá-la nas entranhas. Com uma vontade arrasada, fui atrás dele. Rompemos as trevas passo a passo. Uma lúgubre cerração entranhou-se-me no corpo e estremeci em arrepios quando a amálgama de gemidos sufocados me agrediu. Dois homens no chão eram espancados pelas matracas de um grupo mascarado. Bruno agarrou-me e não deixou acudir, o seu olhar faiscava o ódio retorcido das palavras, drogados bêbados mendigos prostitutas. Este mundo não é nosso! Quis desfazê-lo escarrardes-lhe a cara, mas senti-me sufocar e não fui capaz.
Como um sonâmbulo engoli As ruas da cidade, como um doido desmembrei-me e despejei os meus destroços nas lixeiras, deitei-me com os sem-abrigo, droguei-me com os drogados, emborrachei-me com os bêbados e com eles cambaleei e vomitei, pedinchei com os mendigos, fiz-me prostituta dos becos malditos e fui para a cama com todos os deserdados do amor Pág. 65