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Badameco

Anotações, observações, reflexões sobre quase tudo o que me (co)move

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Anotações, observações, reflexões sobre quase tudo o que me (co)move

Sucumbir ou salvar-se

Avatar do autor julmar, 12.08.20

Se Isto é um Homem, Primo Levi - Livro - Bertrand

Sucumbir é o mais simples: basta cumprir todas as ordens, comer só a ração, obedecer à disciplina do trabalho e do campo»

(...) Queríamos levar o leitor a considerar como o Lager foi também, e em notável medida, uma gigantesca experiência biológica e social.

Fechem-se entre arames farpados milhares de indivíduos diferentes em idade, condição, origem língua, cultura e hábitos, e obriguem-se, nesse lugar, a um regime de vida constante, controlável, idêntico para todos e abaixo de todas as necessidades; é quanto de mais rigoroso um experimentador poderia instituir para estabelecer o que é essencial e o que é adquirido no comportamento do animal-homem perante a luta pela vida.

Não acreditamos na dedução mais fácil e óbvia: que o homem é fundamentalmente brutal, egoísta e estulto na sua maneira de atuar, quando todas as superestruturas civis lhe são tiradas, e que o "Haftling" seria, portanto, o homem sem inibições. Julgamos, pelo contrário, que, em relação a isso, nada mais se pode concluir, a não ser que, diante da carência e do mal-estar físicos obsessivos, muitos hábitos e muitos instintos sociais ficam completamente silenciados.

Parece-me, no entanto, digno de atenção este facto: verifica-se que existem entre os homens duas classes bem distintas: os que se salvam e os que sucumbem. Outros pares de contrários (os bons e os maus, os sensatos e os insensatos, os cobardes e os corajosos, os desgraçados e os afortunados) são muito menos nítidos, parecem menos congénitos e, sobretudo, admitem graduações intermédias mais numerosas e complexas.

Esta divisão é muito menos evidente na vida comum: aí não é frequente acontecer que um homem se perca, pois normalmente o homem não está só, e no seu subir e descer, está ligado ao destino dos que o rodeiam; pelo que só excecionalmente acontece que alguém cresça sem limites, ou desça derrota após derrota até à ruína. Mais, cada um possui habitualmente recursos, espirituais, físicos e também económicos, capazes de tornar ainda menos provável a eventualidade de um naufrágio, de uma carência perante a vida. Acrescente-se afinada que uma sensível ação de amortecimento é exercida pela lei e pelo sentido moral, que é a lei interior; de facto, considera-se tanto mais civilizado um país quanto mais sábias e eficientes são as leis que impedem ao miserável ser demasiado miserável, e ao poderoso ser demasiado poderoso.

Mas no Lager tudo acontece de outra forma: aqui, a luta para viver é uma remissão, porque cada um está desesperada e ferozmente só. Se um Null Achtzehn qualquer vacilar, não encontrará quem lhe estenda uma mão, mas sim alguém que o deitará abaixo, pois ninguém estará interessado que um "muçulmano" (com esta palavra, ignoro porquê, os velhos do campo designam os fracos, os ineptos, os votados à selecção) a mais se arraste todos os dias para o trabalho; e se alguém, com um milagre de paciência selvagem e astúcia, encontrar uma nova combinação para escapar ao trabalho mais duro, uma nova artimanha que lhe proporcione algumas gramas de pão, procurará manter secreta a forma como o conseguiu, e por isso será estimado e respeitado, e tirará um lucro exclusivo e pessoal; tornar-se-á mais forte, os outros terão medo dele e, por isso mesmo, será um candidato à sobrevivência.

Na história e na vida, parece às vezes vislumbrar-se uma lei feroz, segundo a qual «dar-se-á a quem tiver; tirar-se-á a quem não tiver» No Lager, onde o homem está só e a luta pela vida se reduz ao seu mecanismo primordial, a lei iníqua está abertamente em vigor, é reconhecida por todos. Com os aptos, com os indivíduos fortes e astutos, os próprios chefes gostam de manter contactos, que chegam a ser de quase-camaradagem, pois esperam poder tirar, talvez mais tarde algum proveito. Mas aos “muçulmanos”, aos homens em fase de degradação, não vale a pena dirigir a palavra, pois já se sabe que começariam a queixar-se e a contar o que costumavam comer em casa. Muito menos vale a pena ser-se amigo deles, pois não têm conhecimentos importantes no campo, não comem nada extra-ração, não trabalham em Komandos vantajosos e não conhecem nenhuma forma secreta de organização. E, finalmente, sabe-se que estão aqui de passageme, dentro de poucas semanas, deles ficará apenas um punhado de cinzas num campo não muito longe daqui, e um número de matrícula riscado num livro de registo. Embora envolvidos e arrastados sem tréguas pela multidão inúmera dos outros iguais a eles, sofrem e arrastam-se numa íntima solidão baça, e em solidão morrem ou desaparecem, sem deixar rasto na memória de ninguém.

O resultado deste feroz processo de selecção natural poderia ler-se nas estatísticas do movimento do Lager.  Em Auschwitz, no amo de 1944, dos velhos prisioneiros judeus (não falamos aqui dos outros, pois diferentes eram as suas condições) «Kleine Nummer», dos pequenos números inferiores a cento e cinquenta mil, sobreviviam pocas centenas; nenhum deles era um Haftling comum, vegetando nos Kommandos comuns e pago com a ração normal. Só sobreviviam os médicos, os alfaiates, os sapateiros, os músicos, os cozinheiros, os jovens homosessuais atraentes, os amigos ou patrícios de uma ou outra autoridade do campo; e ainda indivíduos particularmente ferozes, vigorosos e desumanos, desempemhando (em consequência de uma investidura por parte do comnado dos SS, que neste sentido mostravam ter um conhecimento dos homens deveras diabólico) os cargos de Kapo, de Blockaltester, ou outros. E, finalmente, os que sem desempenhar funções particulares, pela sua argúcia e energia conseguiam sempre organizar com êxito, obtendo assim, para além da vantagem material e da reputação, também indulgência e estima por parte dos poderosos do campo. Quem não sabe tornar-se um Organizator, Kombinator, Proeminent (feroz eloquência das palavras!) acaba por se tornar dentro de pouco tempo um “muçulmano”. Uma terceira via existe na vida, onde aliás é norma; não existe no campo de concentração.

Sucumbir é o mais simples: basta cumprir todas as ordens, comer só a ração, obedecer à disciplina do trabalho e do campo»

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