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Badameco

Anotações, observações, reflexões sobre quase tudo o que me (co)move

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Revisitando Nietzsche

Avatar do autor julmar, 07.05.20

Poucos filósofos como Nietzsche suscitaram tanta controvérsia no panorama filosófico e cultural.  Vai para 50 anos que me encontrei com ele em Braga na Faculdade de Filosofia, dirigida pelos jesuítas, onde tinham assento todos os filósofos mas sujeitos à crítica da filosofia escolástica, detentora da verdade, à qual as nossas consciências se deviam conformar. A minha também. À época, diferentemente de hoje, o acesso a cultura, a ciência e à filosofia era difícil. Os livros eram caros (imaginem que hoje, aqui neste teclado onde escrevo, com uns poucos clics posso aceder a toda a obra Nietzche), as bibliotecas disponibilizavam apenas os que entendiam e ficávamos limitados aos apontamentos tirados nas aulas e à Sebenta (o nome, em muitos casos, é mesmo literal) construída pelo professor. E o ponto essencial do professor e da sua sebenta sebenta era a tese da inversão dos valores do cristianismo, o que era verdade. O ponto é que o cristianismo já havia feito uma inversão dos valores da natureza. Porém, o meu caminho da desobediência inteletual, já havia começado no seminário e, finalmente, encontrava em Nietzsche um mundo incómodo e fascinante. Tive a sorte de muitos anos mais tarde, por mor do ofício de professor de filosofia, durante cerca de dez anos, lecionar ao 12º ano uma das suas obras  - A Origem da Tragédia . Uma escolha que permitia aos alunos experienciar uma obra filosófica e ao professor ler e ajudar a fazer compreender durante dez anos uma obra filosófica e um filósofo extraordinário. Desta vez, revisitando o livro sublinhado e anotado já há muitos anos, Para Além de Bem e Mal.

«Há livros que possuem, para alma e para a saúde, um valor inverso, conforme dele se servem a alma inferior, a força vital inferior ou a alma superior e mais poderosa. No primeiro caso são livros perigosos, corruptores, dissolventes; no segundo caso, apelos de arautos que convidamos mais bravos a manifestar a sua bravura.Os livros de toda a gente são sempre livros mal-cheirosos: a neles odor da gente miúda. Por toda a parte em que o povo fala e bebe, mesmo no sítios onde venera, costuma cheirar mal. Não se deve ir à igreja quando se pretende respirar ar puro». Pg 42

 
Com a força do seu olhar intelectual e da visão de si próprio cresce a distância e, de certo modo, o espaço que circunda o homem: o seu mundo torna-se mais profundo, avistam-se continuamente estrelas novas, imagens novas e novos enigmas. Talvez tudo aquilo em que o olhar do espírito exercitou a sua sagacidade e profundeza tenha sido apenas um pretexto para este exercício, um jogo e uma criancice; E talvez um dia, os conceitos mais solenes, os que provocaram maiores lutas e maiores sofrimentos, os conceitos de Deus e do pecado, não signifiquem, para nós, mais do que um brinquedo e um desgosto de criança significam para um velho, e talvez o velho homem tenha, então, necessidade de um outro brinquedo ainda e e um outro desgosto, por continuar a ser muito criança, eterna criança.! Pg 66