Homenagem a G.Steiner - Elogio da transmissão
julmar, 04.02.20
Publicado há 15 anos no meu primeiro blog O Pitagórico
A escola em que eu aprendi teria muito defeitos (imperava o magister dixit, os pais davam incondicionalmente razão ao professor, a menina dos cinco olhos afastava para longe a preguiça e o desleixo), mas devo-lhe quase tudo. Fazia-se cópias, muitas cópias; a tabuada era um ritual cantado quotidianamente; treinava-se a caligrafia (do grego escrita bela) em caderno próprio que nos obrigava a um controlo motor da dimensão e forma dos caracteres; ditado todos os dias para aprender a escrever sem erros; leitura em voz alta com pronúncia e entoação como deve ser, cadenciada pela pontuação. As antologias olho-as hoje e bem vejo como eram ideologicamente reaccionárias. Mas olho os textos e revivo-os e muitos dos poemas sei-os ainda de cor. É verdade que com tudo isso me quiseram aprisionar a alma. Não o conseguiram. Se tivermos asas voaremos para os céus que escolhermos.
Ler este livro de Steiner mais que à vida de professor levou-me à minha infância e às minhas aprendizagens e ao modo como aprendi a gostar da literatura. As palavras encantavam-me e as exíguas ilustrações dos textos com a imagem do escritor foram a minha forma de fixar os escritores. Como pensar em Camões, em Vieira, em Camilo, em Eça, em Júlio Dinis, em Pessoa sem os visualizar nas suas feições físicas?
Como agradeço hoje que tenha sido obrigado a decorar rios e serras, estações de caminho de ferro, distritos e capitais, nomes de reis e datas … e sobretudo poemas. Até em latim o professor Torrão me obrigou a saber recitar a introdução da Eneida de Virgílio (Arma virumque cano, Troiae qui primus ab oris…) A memória precisa de exercício.
Não havia ainda Ciências da Educação e o difícil ainda não era sentá-los. Depois chegou o eduquês, o consumismo, a vida fácil, o lúdico permanente, a horizontalidade, as taxonomias, as competências, as transversalidades, a autonomia precoce, os construtivismos. O resultado está à vista.
Diz Steiner:« É por isso que lamento que não se aprenda de cor. Aprender de cor é, em primeiro lugar, colaborar com o texto de uma maneira totalmente única. O que aprendemos de cor muda em nós e nós mudamos com isso, durante toda a nossa vida. Em segundo lugar, ninguém nos pode tirar isso. No meio dos porcos que governam o nosso mundo, a polícia secreta, a brutalidade dos costumes, a censura – e também temos isso na nossa casa sob todas as formas -, o que sabemos de cor pertence-nos. É uma das grandes possibilidades da liberdade, da resistência.»
O que passava pelo «Pitagórico» (http://pitagoras.blogs.sapo.pt/), antecessor do Badameco