A Roda dos Expostos - Texto de Aquilino Ribeiro
julmar, 05.11.23
"A Roda dos Expostos, em matéria de assistência, era a instituição nacional mais operosa do século XVIII. Segundo o manuscrito que temos presente, nunca se confiou tanto menino espúrio à providência de Deus, pai misericordioso. Mal os embarcadiços da Ásia e da América tornavam costas, tomavam conta das mulheres os frades e os peraltas. Os frades, mormente, faziam desta vinha do Senhor ocidental um prodigioso inçadoiro cunicular. Tudo servia, casadas, solteiras, escravas pretas e orientais. Nas sombras da alba, os votos de túnica e cogula, ou embuçados em largos capotes, que se viam deslizar pelas vielas que vinham desembocar ao Rossio, levam contrabando: os infalíveis nascituros para a Roda. Todas as manhãzinhas havia ali um corrupio de depositantes. Não faziam bicha como hoje à porta dos lactários, mas estreitavam-se das esquinas para evitar encontros modestos, pois cada cidade, dizimada pela peste e as aventuras ultramarinas, todos se conheciam. O aparelho fazia certo restolhadoiro a girar, se não era o próprio vagido da criança que avisava. E logo uns braços profissionais, e no entanto os melhores braços caritativos daquele século, pegavam do recém-nado e penduravam-lhe do pescoço o número que o havia de acompanhar muito tempo pela vida fora. Esse número representava em muitos casos o símbolo misterioso de um grande nome histórico. No fundo, a roda dos expostos era um estabelecimento de duas faces: a cristã e a canalha. Cristo tapava com o sudário a miséria social dos seus devotos. A laboração intensa do estranho orfanato caracteriza bem o grau de devassidão, de luxuria irresponsável e desenfreada que tinha atingido a sociedade portuguesa nos tempos áureos do rei magnífico. Que faziam, depois desta aluvião de filhos das ervas? No geral iam formar a moina das cidades. Só os iguala o escalracho quanto a prevalecerem aos boléus e insultos da sorte, revestidos, dir-se-ia, de uma energia celular. A casa lusitana encheu-se desta espécie de radiários até até às telhas.” Pg 23