A República em Vilar Maior
julmar, 05.10.10
História de uma Perseguição em Vilar Maior
Parte I
O conflito entre a Igreja e o novo regime - A República - vivido em todo o país também aqui em Vilar Maior teve lugar
Datado de 1913 ( ano do exílio em Belmonte), o padre Júlio Matias escreve este opúsculo e dedica-o “Ao povo de Vilar Maior e Badamalos que tão unido se manteve sempre em minha defeza, o preito da minha gratidão”
Nas 24 páginas que o compõem faz o padre Matias o relato de uma perseguição de que foi vítima em Vilar Maior e que determinou o seu afastamento da freguesia e do distrito da Guarda por um ano. Dado o interessedo documento e a bela forma de escrever do seu autor aqui se faz uma síntese, na medida do possível, com o próprio texto do autor. Começa por um prólogo em que faz considerações sobre a República criticando essa falange tosca, imbecil e desordeira que só parece ser avultada por ser turbulenta, e que hoje é tão republicana como ainda ontem era monarchica intransigente.(...)
Eis, senhores dirigentes da Nação, o processo de que se serviram três Kagados cujos nomes redemoinham nas ruas de Vilar Maior como pó amaldiçoado nos lábios de todos os seus habitantes, e que depois de tantas vezes deitarem a cabeça de fora da concha conseguiram finalmente desterrar-me do território das minhas freguesias, porque do coração dos meus freguezes não são eles nem poder algum d’este mundo capazes de o fazer. E passa ao relato dos factos começando pelo retrato dos Kagados: dois gabirús que, de longínquas terras, onde exerceram os mais rudes misteres, levantaram um dia voo, vindo pousar a Villar Maior, onde em 1910 o acaso os fez respectivamente presidente e vice-presidente da comissão parochial da mesma freguesia; e um outro que, depois de assistir ao epilogo fatal do lúgubre drama, poude cahir tranquilo no campo dos mortos. Sobre este nem uma palavra, nem a mais leve referencia... Sobre os mortos o silêncio perpetuo... E se elle carece do meu perdão, aqui lhe fica consignado.
Origem da perseguição
Em 1910, o bispo decidira substituir o pároco de Vilar Maior conta a vontade de um ferrabraz com quem mantinha relações de interesse privado. O ferrabraz ferido nos seus interesses põe-se a caminho do Paço Episcopal da Guarda na companhia de alguns compadres todos eles fazendo rasgado cumprimento ao Espírito Baccho. O governador do Bispado vendo-os em tão capitosa borracheira, despede-se em silêncio e manda-os em paz. Regressando a casa desiludido, o ferrabraz tão velhaco como a sua ignorância, e mais estúpido que o Castello, pretende conseguir pelo disparate o que lhe é impossível pela razão, valendo-se para isso de um punhado de inocentes creanças que, armando-as de latas e ferros velhos, ensaia para a estonteante comédia que se vai desenrolar.
Feito o ensaio, o dia em que o novo e inocente pároco chega à aldeia tem esta belíssima recepção: sino tocando a rebate e a batuta instrumentalizada brandindo misturada com a vozearia. È escolhido novo pároco e a nomeação recai sobre o padre Júlio Matias.
Primeira Investida
Em Março de 1911 commeteram-se na egreja parochial uns desacatos em que, pela sua gravidade, eu tive que intervir.
Na missa do domingo seguinte, onde não faltaram os Kagados, o padre Matias fez algumas advertências no sentido de mostrar aos freguezes o respeito que é devido ao templo. Foi o suficiente para os Kagados, no fim da missa , se lançarem furibundos para a sacristia fazendo acusações.
À voz “vão prender o padre”, o povo alvoroça-se num momento, movimentando-se tudo o que estava dentro do templo. Já não havia naifas para tantos homens, nem ... commentários para tantas mulheres. O padre serenou os ânimos exaltados impedindo o linchamento. Tal não impediu que durante as noites seguintes as casas deles fossem apedrejadas.
A participação seguiu para o Sabugal e, volvidos alguns dias, o regedor intimava o padre e os dois cágados a comparecerem perante o administrador. O povo pretendia a acompanhar o padre mas este não o permitiu, dizendo que a innocencia não precisa de defesa. A élite da freguesia insiste em acompanhá-lo e o padre entendeu que não devia levar outra companhia mais que a razão que me assistia. Não pôde recusar a companhia de António Gata que lhe disse ir não como testemunha de defesa, mas como companheiro de viagem. Ora, os acusadores receando que António Gata fosse defensor do padre envolvem-no na mesma trama acusando-o ao Administrador de inimigo da República. António Gata surpreendido com tal acusação pede ao Administrador que faça vir de novo à sua presença as “sombras” que tiveram a audácia de o denunciarem como inimigo de um regime a que elle tem consagrado a melhor das suas atenções, que depois de bem as fitar, quer ver com que cara se atrevem a assacar-lhe tão infame acusação.
Volvidos à presença do administrador, as “sombras” disseram ser amigas do sr. António Gata , ser elle um bom republicano e só o poderem accusar de ser amigo do sr. Reitor.
Desfeita a tramóia o administrador já não os deixa sair sem o padre ser ouvido. Acusado de nas homilias e fora delas atacar as leis do divórcio, registo civil e outras e depois de o padre prestar as suas declarações de novo os acusadores são interrogados negando tudo o que há pouco haviam afirmado e dizendo-se até amigos do padre.
O Exmº Administrador, nauseado d’ um descaro tão sem igual, levanta-se na sua cadeira e deixa escapar esta phrase de indignação: “ arre diabo! Que nunca vi tanto ódio contra um homem!” depois de os advertir severamente fá-los assinar uma declaração em como o padre nunca havia atacado lei alguma da República.
Ia já alta a lua na mansão celeste quando eu e o meu companheiro regressamos a Vilar Maior, onde nos aguardava o povo irrequieto, que, ao saber que havia sahido ileso da “bacorada” - como ele chamava à nauseante força - irrompeu n’um delírio de satisfação geral, retirando-se depois em paz.
Longe do Sabugal, no dia seguinte, os Kagados dizem que se o padre não ficou preso foi por dele terem dó que de joelhos lhes havia pedido perdão.
In Vilar Maior, minha terra, minha gente
Júlio Silva Marques