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Badameco

Anotações, observações, reflexões sobre quase tudo o que me (co)move

Badameco

Anotações, observações, reflexões sobre quase tudo o que me (co)move

Uma insólita leitura

Avatar do autor julmar, 28.06.25

Morramos ao Menos no Porto

Não costumo desistir de um livro, embora tenha sentido algumas vezes essa tentação. Com este livro, lidas duas ou três páginas, disse, para mim, fico por aqui. Não, vou ler um pouco mais e fui até ao fim. Começei a sentir o fluir das palavras, um certo sabor a Saramago, por um lado, a Lobo Antunes, por outro. Lembro-me de não gostar do ritmo jazz e como se me tornou melodioso; frases longas entrecortadas por pausas inesperadas, variações de tom e repetições como “refrões”, criando um fluxo dinâmico e quase musical. Cada capítulo é uma extensíssima frase. 
Como pano de fundo, a filosofia estóica que o título do livro ostenta com uma carga trágica, irónica e poética, a sugerir que, mesmo que tudo esteja perdido, talvez reste ainda o consolo de morrer num lugar que reconhecemos — o Porto, a casa, o corpo, a memória. 
Uma narrativa que se desenvolve em dois planos:
  • A narrativa de António – viúvo de Silvina, cuja morte permanece presente como um corpo defunto que ele cuida. Ele habita um prédio decadente, onde surgem ecos de um passado violento, personagens periféricas (parteira, sargento, passador, etc.) e murmúrios dos mortos debaixo do chão franciscomotasaraiva.com+4quetzaleditores.pt+4quetzaleditores.pt+4.

  • A dimensão espectral de Silvina – Silvina, outrora viva, aparece como presença morta (sentada numa cadeira de baloiço), cujos odores ainda permeiam o ambiente e interagem com o entorno urbano (sumidouros, cheiros, cães) almedina.net+4quetzaleditores.pt+4rtp.pt+4

Para saborear um pouco:

- Vai, lá rapaz

e se eu mandasse, mandava que passassem com este badanal que não aguento, e náuseas e vómitos que me dão também para um pote de cerâmica, porra para a janela empenada que não fecha e o barulho das mães a chorarem, da namorada aflita, até dois pais enervados, onde é que já se viu um homem a chorar, tudo vem pela fresta da janela que não fecha, porra para esta casa e porra para esta janela, para uma chávena que não encontro, eu que tenho de começar a ginástica da minha mulher e é melhor agora que há menos botas no passadiço e há menos berraria, e a catrineta cheia, e a catarineta afundada, mais uma que se encheu e se afundou, parece uma repetição absoluta e exímia de Deus a jogar aos dados e a ganhar sempre, aposta mais uma que ganha outra vez. pg 100

Domínio - Como o Cristianismo transformou o pensamento ocidental

Avatar do autor julmar, 11.06.25

Dominio.jpg

Na cultura tudo se liga. O passado longínquo que não vivemos reencontramo-lo em manifestações várias. Foi assim, que ao chegar á página 288, me reencontro com a heresia dos albigenses (séc. XII) e me veio à memória a música que trauteei na adolescência, passada na clausura do seminário diocesano de Beja, em 1966:

Dominique, nique, nique
S'en allait tout simplement
Routier, pauvre et chantant
En tous chemins, en tous lieux
Il ne parle que du Bon Dieu

Ler este livro é embarcar num navio conduzido por um timoneiro experiente. Tom Holland guia-nos com firmeza por uma viagem fascinante ao coração da história do Cristianismo.

Partimos de uma paisagem caótica — uma floresta densa de religiões, seitas, cultos e filosofias da Antiguidade — e, ao longo dos séculos, visitamos cidades marcantes, atravessamos batalhas, concílios, perseguições, tratados, e cruzamo-nos com figuras inesquecíveis: Jesus, apóstolos, mártires, santos, hereges, imperadores e reis.

É um percurso que mostra como o Cristianismo, contra todas as probabilidades, deixou de ser apenas mais uma voz num mundo saturado de divindades e tornou-se a força dominante que moldou o pensamento, a moral e a cultura do Ocidente.

Um livro que não se limita a narrar factos — conduz-nos por eles, com ritmo, profundidade e reflexão.

Dos imensos quadros que o autor nos oferece ao longo de 600 páginas, muitos de autênticos terrores, refiro aquele que, após cerca de oitocentos anos é relembrado pela canção acima mencionada. 

Trata-se da chacina em Béziers contra os albigenses (ou cátaros) que ocorreu em 22 de julho de 1209.

Esse massacre marcou o início da Cruzada Albigense, lançada pelo Papa Inocêncio III para erradicar a heresia cátara no sul da França. Durante o ataque, tropas cruzadas cercaram a cidade de Béziers, que abrigava tanto cátaros quanto católicos. Quando a cidade foi tomada, estima-se que todos os habitantes — entre 10.000 e 20.000 pessoas — foram mortos, sem distinção entre hereges e fiéis católicos.

É nesse contexto que se atribui ao legado do legado papal, Arnaud Amalric, a frase:
"Matem todos, Deus reconhecerá os seus."
(“Caedite eos. Novit enim Dominus qui sunt eius.”)

Uma nota particular, sobre como cada um tece a sua cultura.

O que me chamou em primeiro lugar a atenção para este livro foi a capa. Via a minha mãe, que por alguns tempos viveu em minha casa, a olhar para esta pintura que tenho na sala onde tomávamos as refeições sem se atrever a falar, até ao dia que disse: - Eu não te queria dizer, Júlio, mas aquela pintura não é normal, há ali qualquer coisa que não está certo. 

A minha mãe, não sabia quem é Salvador Dali, nem entendia nada de surrealismo. Católica, apostólica romana, sabendo que eu não era lá muito católico, ficava incomodada por eu não ter um Cristo crucificado como deve ser, com cravos, com coroa de espinho e com sangue.  A pintura é de 1951, o mesmo ano em que a minha mãe me deu à luz.