Viva a literatura!
julmar, 19.08.24
Que seria Portugal sem Camões e sem Pessoa, que seria Potugal sem poetas e romancistas, mais ou menos notáveis? E, já agora, que seria de mim sem eles.
“ A escrita é refúgio, é salvação e é também sonho, o degrau apontado ao céu de uma escada que conduz a outra versão de nós mesmos. A mulher que sou nessas folhas e que deste modo mais nenhum conheces encontrou no reverso da escrita outra coisa que lhe faltava. A ti, encontrei-te no relato, na confissão no escrever diário e compassado de existir. A ele, encontrei-o na leitura. Desde sempre, ela nos dá tanto do que nos falta: as informações, as aventuras, as emoções alheias que nos estruturam educam sentimentalmente - e até, sei-o agora, o amor. Não sou capaz de dizer porquê, mas foi num livro que li que encontrei um indício de um sentimento. Mentiria se dissesse que sei como e por que razões essa pista emergiu ali e não na vida real. Ou talvez não mentisse, mas isso não nos aproximaria da vida real. Ou talvez não mentisse, mas isso não nos aproximaria de verdade. Aliás o que é o real senão um lugar vizinho deste, feito de papel, em que costumávamos encontrar-nos? Foi no livro que dei com este homem que acabaste de me ver beijar-um jovem professora em fuga, dependente do telemóvel e às turras com a vida e com a Morte - e foi ao lê-lo que a ele fiquei ligada. Depois disso, cresceu em mim um sentimento e, agarrada a ele, uma história que te contei em conjunto com outras: a de de um lugar que é mundo, o Morro da Pena Ventosa; a de uma pessoa que era tudo e de verdade, a minha avó; e ainda a da tua própria existência, que para mim é tão palpável como esta caneta e o amor com que, a partir da leitura do romance, com ela criei. Fazia-me falta o amor, faz-nos sempre falta o amor. Eu precisava dele, como o mundo precisa de esperança e de coragem para enfrentar aquilo em que se tornou e conseguir ser uma versão melhor dele mesmo. À falta daquilo que a vida nos tira e tirará sempre, que nunca nos faltem as ideias, as palavras e a imaginação, que nunca se acabem as frases e as histórias, que dure para sempre a possibilidade de criar, porque o que existe ou não chega ou é torpe ou insuportável. E eu sou ainda e somente a criança que viu o pai tombar, derrubado pelos próprios demónios, e a mãe partir pela porta da dor. Sou apenas a menina que subia contigo ao sótão, para ver o sol a aquecer os telhados e a vencer as trevas. Por isso, se tu me ajudaste a enfrentar as agruras que macularam a minha infância, peço-te que aceites que ele possa dar-me o braço na idade adulta, aquela em que mais facilmente somos deixados sozinhos. Tu e ele vieram do mesmo lugar.
Perderá tudo isto valor se tiver sido efabulado? Por que lúgubres caminhos transita realidade? E em que esquina sombrias se encontra com a fantasia, sempre pronta a completar-lhe as omissões, ou descuidos, os lapsos e as imposturas? Dir-me-ás, talvez que exagero, que criar-te a ti é dar à luz a amizade, e que toda amizade é uma construção, mas que parir aquele homem foi inventar o amor e que esse, por mais que precise também de ser construído não germina nem floresce sem verdade. Mas, Luísa, não há na escrita nenhum compromisso com a verdade, apenas um ato de rebeldia, uma forma de nos vingarmos da vida. A leitura, essa é a verdadeira ação criadora, os metros últimos da passadeira que a escrita estende. Por isso, se estás a ler isto, acredita em mim: tudo o que aqui leste-incluindo a tua existência e a dele aconteceu mesmo. Sei que sim porque eu sinto, não preciso de mais. Basta-me o gosto inefável da fantasia. “