![Misericórdia de Lídia Jorge - Livro - WOOK]()
Para mim uma leitura é uma conversa com o seu autor. A tendência nas leituras, como no resto da vida, é irmos para junto dos que conhecemos. Temos a segurança, sabemos o que vamos encontrar, sabemos que não perdemos tempo. Não teremos surpresas mas também não sofreremos decepções. Desta vez o encontro é com Lídia Jorge, com quem já 'namorara', pois ali a piscar-me o olho está 'A Costa dos Murmúrios' agora ultrapassada por ´Misericórdia' . A nossa conversa com os autores torna-se cada vez mais interssante à medida que a conversa avança e encontramos um chão comum, um olhar que nos enriquece, reflexões que já fizemos, modos de olhar o mundo e a vida. A autora é quatro anos mais velha do que eu, por isso, vivemos com proximidade os mesmos acontecimentos; a ela valeu-lhe, como a mim, para conseguir tirar uma licenciatura uma Bolsa de Estudo da Fundação Caloute Gulbenkian; a Lídia, como eu, é filha de pais agricultores e sabemos, portanto, o que é a terra, as sementeiras, o cuidar das plantas e animais, viver a vida agarrado à vida; eu como a autora fui professor do ensino secundário (ocasionalmente do ensino superior); a mãe da Lídia é Maria dos Remédios e a minha é Maria da Graça. Também , e talvez esse tenha sido a razão decisiva que me conduziu a esta leitura, a minha mãe passou os últimos anos da sua vida num lar e nunca esquecerei o dia em que a fui lá levar e me dei conta da gravidade do momento. De regresso a casa, chorei. Também a minha mãe, dispensada agora de cuidar dos outros e de si, para além das rendas, lia, lia muito e até arriscava escrever. E passados já os noventa anos leu 'Os Maias' , mostrando-se muito incomodada com o incesto narrado na obra. A minha conversa com Lídia Jorge, ainda quase no princípio, promete durar. Por causa da forma, do conteúdo e da inspiração. Eu que presto homenagem ao deus das pequenas coisas e dou importância ao Zé Ninguém, delicio-me com textos como este:
Tal como eu imaginava, percebi que ela queria evitar a questão, mas eu disse-lhe de imediato - “Personagens importantes, gente honrada, figuras que mal ou bem, lá onde colocavam os pés criavam um factos relevantes, faziam um história. Mas não é o teu caso. Os teus livros são o oposto. No conjunto, os teus livros são um vale escavado num deserto repleto de gente pobre . Rotos, descalços, abandonados, loucos, emigrados sem eira nem beira, imigrantes sem lugar onde cair mortos, raparigas feias que todos enjeitam, pelintras de todo jeito, gente assassinada, gente que se atira à água para morrer, para o destino, em troca, lhes salvar os filhos, gente sem religião, sem abrigo, sem pátria, sem casa, sem modos nem figura. E eu só me pergunto porque te sentes atraída por esse tipo de criaturas. Figuras que não se levantou do chão. Miseráveis dentre os miseráveis. Ora diz-me, quem gosta de lidar com a vida dos miseráveis? Os teus personagens parecem os rapazes que São Francisco de Assis visitava. Se ao menos escrevesses sobre São Francisco, mas não, tu escreves sobre os pobres de quem ninguém conhece o nome. Como tua mãe, pergunto-me por que escreves sobre esse tipo de figuras e não sobre as outras, as que vencem, as que ficam, mas toda a gente já conhece, os fortes, os bons, os heróis, os santos, os válidos…” Página 111
Exílio.
Este é o meu lugar de exílio. Aqui, me depositaram a meu pedido e por minha livre vontade, vinda da casa dos meus pais, e onde não mais voltarei, também por minha livre determinação. A vida é um arco, tem o seu começo e o seu fim, inicia-se num berço, faz o seu voo ascendente, e a partir de certa altura a curva desce até nos entregarmos à terra, de novo dentro de uma caixa de madeira que em nada difere de um berço.
É nesta descida que me encontro, nada tenho que me queixar. Recuso o lamento, repudio a contemplação da doença e condeno o prolongamento da vida para além dos seus limites. O que não quer dizer que não sofra. Há muito que cheguei à conclusão de que faz parte da descida do arco da vida lidar com o sofrimento. Há anos que mal caminho dando passos oscilantes, ou mesmo não caminhando de todo, como acontece maior parte dos dias e das noites, desde que aqui cheguei, paralisada, e a sensação que tenho, como acabei de dizer, é de exílio. Mas, ainda assim, recorro à memória para sair destes muros e triunfar sobre o meu estado de reclusa.
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