A Revolução Cultural Chinesa
julmar, 26.01.24
Corria o 'Verão Quente' de 1975 com Portugal saído de uma revolução com um futuro muito incerto. Eu era um jovem de vinte e poucos anos que tinha iniciado a vida de professor e com um futuro tão incerto como o país. Tinha aderido aos valores da revolução, queria comprometer-me e tendia a participar em movimentos de esquerda. A maior parte da juventude que assim alinhava era mais embalada pela corografia, música, palavras de ordem e um desejo de um mundo novo do que pelo conhecimento. Eu, talvez por causa da filosofia, era um pouco mais ponderado o que não era coisa recomendável no clima que se vivia. Contra o revisionismo soviético, surgia o astro brilhante de Mao com a revolução cultural, cuja adjetivação era o suficiente para atrair os inteletuais, e daí ter comprado O Pequeno Livro Vermelho de Mao Tse -Tung. Em vez do enorme livro da Bíblia (tantas vezes, ouvido e lido), tinha agora este pequenino livro ( que ao contrário de Marx e Lenine não tinha qualquer valor teórico) feito de sentenças e oráculos que não incitava a pensar - atividade desaconselhada censurável para quem quer fazer a revolução já - mas à prática revolucionária. Isso não obstou que o Pequeno Livro seja o 2º livro mais lido no mundo, 820 milhões. O primeiro é a Bíblia, 3, 9 biliões.
Se ainda fosse professor de filosofia, pediria aos alunos, após leitura do livro
Alalisa e comenta:
“Algures no seu interior, reside a compreensão, inarticulada mas profunda, dos danos causados pela destruição de uma filosofia: uma população que não acredita em nada é mais perigosa do que uma população que acredita nos ideais errados.“ Página 226
Os extratos que se seguem são ilustrativos desse período decorrido entre 1966 - 1976
"«É impossível compreender a China de hoje sem compreender a Revolução Cultural», escreve Tania Branigan. Durante essa década de fanatismo maoísta, entre 1966 e 1976, as crianças viraram-se contra os pais, os estudantes condenaram os professores, e estima-se que dois milhões de pessoas morreram pelos seus supostos pecados políticos, enquanto dezenas de milhões foram perseguidas, ostracizadas e presas. No entanto, na China, este período brutal e turbulento existe, na maior parte das vezes, como uma ausência: supressão oficial e trauma pessoal conspiraram para a amnésia nacional. Memória Vermelha revela quarenta anos de silêncio através das histórias de indivíduos que viveram e protagonizaram aquele período de loucura maoísta. Explorando habilmente como esta era definiu uma geração e continua a ter impacto na China atual, Branigan pergunta: «O que acontece a uma sociedade quando já não se pode confiar nos que nos são mais próximos?
A revolução Cultural
Em 1968 as campanhas intensificaram-se. Foi mudado, com sete outros prisioneiros, para uma cabana: a sala dos fantasmas negros, chamavam-lhe, e eles próprios se começaram a ver como apenas meios humanos. Rastejavam sobre tábuas de madeira com pregos quebrados, enquanto as pessoas lhes gritavam insultos e lhes batiam. Assim que as reuniões de luta terminavam, era mandado de novo trabalhar, debatendo -se para erguer o corpo espancado, carregado de baldes de água, trepando os montes gelados.
Numa noite gélida, foi puxado para fora da barraca, vendaram-lhe os olhos, amordaçaram-no e arrastaram-no para um campo onde os seus torturadores o forçaram a tropeçar em estonteantes círculos. Atiraram-no para dentro de uma cova profunda e enterraram-no até ao pescoço. Tiraram-na outra vez lá de dentro e bateram-lhe até sangrar. Sabia que iria morrer em Datong. Muitas pessoas morreram. “Mataram -se - eram suicidados“, disse Wang. Quem queria saber da vida de um inimigo político? Apenas os débeis, os indecisos; aqueles que não acreditavam a sério. Mas Wang não queria matar-se. Não seria absolvido: seria apenas mais um criminoso morto. E além disso, queria viver.
Foi levado exibido de aldeia em aldeia para ser espancado e insultado. No inverno, a temperatura baixou para 20° negativos. A fome grunhia. Planeou fugir, mas deteve-se sempre. Ouvira os anúncios da pena de morte para os fugitivos; sabia que seria perseguido e devolvido. Mais tarde, ouviu falar daqueles que tinham nadado desde Guangzhou até long Hong Kong, desafiando estou granja os tubarões e afogando-se, e invejou-os. Estava em Shanxi, profundamente no interior, e não havia para onde fugir. Não sabia como nem porque aguentara, enquanto tantos cederam. Mas sabia que um dia contaria o seu sofrimento. Sabia que escreveria a sinfonia da sua história” pg 6o?
Reler pós 88-89
A construção da riqueza sobre a exploração;
“Nós escolhemos não olhar, mas os chineses tiveram de fingir que não tinham visto, uma tarefa muito mais difícil “ pg 88
“Os alunos deitavam água a ferver em cima dos professores, obrigavam-nos a comer excrementos ou gatinhar sobre brasas, forçavam-nós a bater uns nos outros. O movimento transbordava das escolas e espalhava-se pelas ruas.” 107 e pg seguinte descrição da barbáries da RC
Depois da RC, vieram os julgamentos de alguns que a haviam feito, pertencentes aos Guardas Vermelhos, como Zhou:
“ E foi enviado para um campo de trabalhos forçados; pelo menos podia ver o sol, respirar ar fresco e falar com outros prisioneiros. Escavavam argila de poços profundos e só lhes era dada comida quando cada um deles recolhera o suficiente para 200 tijolos. Depois, descalços durante o inverno, calcavam a argila e o cinzento tornava-se vermelho com o sangue. Mais tarde, foi promovido ao departamento técnico da fábrica do campo e, após 15 anos, foi libertado. Mas a liberdade revelou-se mais difícil do que imaginara. Os pés continuavam feridos e, mesmo agora, quando o vento mudava sentia a dor profunda nos ossos. A mal nutrição a longo prazo enfraquecera-o e causava-lhe dores de estômago crónicas. O seu casamento desfizeras após a sua detenção e não tinha contato com o filho, que vivia agora no Canadá. ‘Não tem filhos?’ Ainda bem. Uma família é um fardo” página 148
“O mais estranho foi como tudo se tornou normal. A repetição tornava o bizarro rotineiro. O rotineiro não podia, por definição, ser notável, e uma vez que era incutido de manhã à noite, cedo foi tomado como garantido. O que tinha de ser era o que era e o que era tornou-se o que tinha que ser “. 182
“ acima de tudo, mostravam que os comuns laços de amor eram triviais, mesmo reles, e facilmente desatados, em contraste com a lealdade a causa ao seu líder. O alcance do totalitarismo a todas as partes da sociedade, mesmo a família, é assustador. Mas o que é verdadeiramente horripilante é que se estende a todas as partes do indivíduo, incluindo o que não se vê: a sua alma a sua psique, o seu coração. Procura controlar não apenas a sua vida externa (que emprego tem, Com quem anda, o que diz), não apenas as suas crenças, mas as suas emoções. Zhang tinha razão: fora uma era de traição, de escolhas políticas alimentadas pelo medo, pela idolatria, pela raiva adolescente, o ressentimento conjugal e pela sobrevivência. O que me surpreendia era a quantidade daqueles que se mantiveram firmes.” Página 219