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Badameco

Anotações, observações, reflexões sobre quase tudo o que me (co)move

Badameco

Anotações, observações, reflexões sobre quase tudo o que me (co)move

Mais uma vez, Aquilino

Avatar do autor julmar, 05.11.23

Príncipes de Portugal

O meu amigo AF, de cada vez que me encontrava e a conversa dava em literatura, vinha sempre com a mesma pergunta: - Olha lá, já leste 'Um Escritor confessa-se' do Aquilino? Antes que lhe respondesse: -Tens que ler! E li. AF que é um contador de histórias, um pouco ao jeito de Aquilino, abriu-me o armário resguardado por janela de vidro e mostrou-me a obra completa de Aquilino. Fora, estava o livro objeto deste post, destinado a uma oferta. - Primeiro leva-lo tu e lês, levas com v de volta. Coloquei em pausa a leitura de 'O Outro Nome' do recém laureado com o prémio Nobel da Literatura, Jon Foss, e foi quase de uma só vez. Eu já sabia que havia uma outra história de Portugal diferente da que aprendi quando estudante mas não conhecia esta contada pelo Aquilino. São partes da história e sabem a pouco. Pena ter terminado no Marquês de Pombal.

Exemplo de miséria - D. João III

“O estabelecimento da Inquisição foi o ato de política interna que mais apaixonou D. João III. Portugal passou a ser com a Espanha a sentinela alerta da fé contra todos aqueles que se atrevessem a formular uma dúvida, uma sombra de incerteza, uma interrogação ao santo nome de Deus, segundo o credo romano.

 Fugiram por todos os caminhos quantos podiam representar espírito de progresso, temerosos da noite que se adensava sobre a Nação. Hoje Portugal gloria-se dos Amatos, dos Sanches, dos, Gouveias, que enalteceram a terra portuguesa, pelo facto de terem ouvido aqui a canção do berço. Fraca consolação! Antes são eles fantasmas miliários, clamando contra aqueles que Pinheiro Chagas, na peugada aliás de Herculano, chama o mais estúpido e fanático dos reis.” Pg 160

Exemplo de grandeza - O Marquês de Pombal

"Fomentou o progresso com a criação de fábricas e oficinas, o mais diligentemente que pode. Algumas indústrias criou de cima a fundo, como a de sedas. As aldeias de Portugal sombrearam se. Ao Fundo vir ao cabo de anos com a bela folhagem das amoreiras de que se repasta ou bombix. Chegaram a formar uma selva útil por esse país fora. Num momento de marasmo dos teares, os industriais de tamancaria do Porto acorreram à aldeia e compraram por dez reis de mel coado todos esses velhos e nodosos troncos para paus de socos., os infinitos e bárbaros sucos do Norte português. A reforma da universidade; empresas de fiação, de cerâmica, de chapelaria, de curtumes; colégios com orientação pedagógica moderna; feiras industriais- todas estas coisas inovou o Marquês que as vira e aprendera nos países que havia percorrido como Ministro e encarregado de negócios de Portugal.

Era um homem inteligente, utilitário, direto, que punha dignidade no que fazia, que deu bem, conta que o país era o mais flácido dos colóides, mole, embrutecido, explorado por uns, mantido em seu torpor por outros, e fez o que pôde para o galvanizar. Fê-lo acima do espírito de camarilha, de que acabou por ser vítima" Pg 240.

A Roda dos Expostos - Texto de Aquilino Ribeiro

Avatar do autor julmar, 05.11.23

"A Roda dos Expostos, em matéria de assistência, era a instituição nacional mais operosa do século XVIII. Segundo o manuscrito que temos presente, nunca se confiou tanto menino espúrio à providência de Deus, pai misericordioso. Mal os embarcadiços da Ásia e da América tornavam costas, tomavam conta das mulheres os frades e os peraltas. Os frades, mormente, faziam desta vinha do Senhor ocidental um prodigioso inçadoiro cunicular. Tudo servia, casadas, solteiras, escravas pretas e orientais. Nas sombras da alba, os votos de túnica e cogula, ou embuçados em largos capotes, que se viam deslizar pelas vielas que vinham desembocar ao Rossio, levam contrabando: os infalíveis nascituros para a Roda. Todas as manhãzinhas havia ali um corrupio de depositantes. Não faziam bicha como hoje à porta dos lactários, mas estreitavam-se das esquinas para evitar encontros modestos, pois cada cidade, dizimada pela peste e as aventuras ultramarinas, todos se conheciam. O aparelho fazia certo restolhadoiro a girar, se não era o próprio vagido da criança que avisava. E logo uns braços profissionais, e no entanto os melhores braços caritativos daquele século, pegavam do recém-nado e penduravam-lhe do pescoço o número que o havia de acompanhar muito tempo pela vida fora. Esse número representava em muitos casos o símbolo misterioso de um grande nome histórico. No fundo, a roda dos expostos era um estabelecimento de duas faces: a cristã e a canalha. Cristo tapava com o sudário a miséria social dos seus devotos. A laboração intensa do estranho orfanato caracteriza bem o grau de devassidão, de luxuria irresponsável e desenfreada que tinha atingido a sociedade portuguesa nos tempos áureos do rei magnífico. Que faziam, depois desta aluvião de filhos das ervas? No geral iam formar a moina das cidades. Só os iguala o escalracho quanto a prevalecerem aos boléus e insultos da sorte, revestidos, dir-se-ia, de uma energia celular. A casa lusitana encheu-se desta espécie de radiários até até às telhas.” Pg 23