Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Badameco

Anotações, observações, reflexões sobre quase tudo o que me (co)move

Badameco

Anotações, observações, reflexões sobre quase tudo o que me (co)move

Ensinar uma pedra a falar

Avatar do autor julmar, 10.08.23

Livro: Ensinar Uma Pedra a Falar | INCM

Os livros que mais gostei de ler são os livros que gostaria de ter escrito. Por mais de uma vez tive este na mão para o trazer comigo e o voltei a pôr na prateleira. Escrevi neste blog, o ano passado, uma história intitulada "O barroco que fala", crente na universalidade da comunicação: falamos com os outros, falamos connosco, falamos com o nosso cão, com as nossas plantas, com o sol, com o universo. Também há quem fale com deus, com os anjos e com os santos.  E também podemos ouvir, escutar que só assim há comunicação. Tudo no universo tem uma linguagem se estivermos dispostos a ouvir. Para muitos, ler este livro será uma grande maçada por razões muito variadas. 
Se tiver de escolher um dos capítulos, eu fico indeciso: são todos densos, tão profundos, tão belos. Por isso faz sentido a nota preliminar da autora: “não se trata de uma recolha de textos dispersos, como certos autores fazem para complementar a sua verdadeira obra: esta é a minha verdadeira obra, exatamente assim. “ O que se compreende depois de ler o livro.
Alguns excertos que me chamaram a atenção
A mente-a Cultura-tem duas pequenas ferramentas, a gramática e o léxico: um balde decorado de criança, com uma pá a condizer. Com estas duas coisas lançamo-nos sobre os continentes e fazemos todo o trabalho do mundo. Com elas, tentamos salvar as nossas próprias vidas“ página 32
 
“Deus não exige que abdicamos da nossa dignidade pessoal, que nos juntemos a pessoas desconhecidas, que nos percamos e nos desviemos de tudo o que não seja ele. Deus não precisa de nada, não pede nada e não exige nada, como as estrelas. O que exige estas coisas é uma vida com Deus.
A Experiência ensinou à nossa raça que, se o conhecimento de Deus é o objetivo final, então estes hábitos de vida não são os meios mas as condições em que estes meios operam. Não precisamos de fazer essas coisas; de maneira nenhuma. Deus está-se nas tintas, sinto muito dizer-vos. Não temos de fazer essas coisas -a menos que queiramos conhecer Deus. Elas agem sobre nós, não sobre ele.
Não precisamos de ficar sentados lá fora, no escuro. No entanto, se quisermos olhar para as estrelas, perceberemos que a escuridão é necessário. Mas as estrelas não necessitam dela, nem exigem.” Página 53
 
“ Porque é que nós, nas igrejas, parecemos turistas alegres e descerebrados numa excursão organizada ao Absoluto? Os turistas tomam café com donuts no convés C. Deve estar alguém a cuidar do navio, corrigindo a rota, evitando icebergues e baixios, alimentando os motores, vigiando o ecrã do radar e relatórios metereológicos transmitidos via rádio a partir da terra. Ninguém sonharia pedir aos turistas que se ocupassem dessas coisas. Infelizmente, entre esses turistas no convés C, que bebem café e comem donuts, encontram-se o capitão, todos os oficiais e o restante tripulação do navio. Os oficiais conversa, para vejam e pisca o olho nas anedotas ligeiramente picantes, como as pessoas normais. Os membros da tripulação tem pronuncias engraçadas. O vento parece estar a levantar-se.
No geral, não acho os cristãos, fora das catacumbas suficientemente sensíveis às condições envolventes. Alguém faz a menor ideia da espécie de poder que invocamos tão levianamente? Ou, como desconfio, ninguém acredita numa palavra disso? As igrejas são crianças que brincam no chão com os seus conjuntos de química, preparando uma dose de TNT para matar o tempo numa manhã de domingo. É uma loucura usar chapéus de palha ou veludo para ir à igreja; devíamos todos usar capacetes. Os cristãos deviam distribuir coletes salva-vidas e foguetes da sinalização, deviam prender-nos aos bancos. Pois o Deus adormecido pode acordar um dia e sentir-se ofendido, ou o Deus acordado pode atrair-nos para um lugar de onde nunca conseguiremos regressar.
Os judeus hassídicos do século XVIII tinham mais juízo e mais fé. Um açougueiro, cujo trabalho exigia invocar o senhor, todas as manhãs se despedia em lágrimas da mulher e dos filhos antes de sair para o matadouro. Todas as manhãs sentia que nunca mais os voltaria a ver. Pois todos os dias enquanto estava ali parado com a faca na mão, as palavras da sua oração o punham em perigo. Depois de chamar Deus, Deus poderia reparar nele e destruí-lo antes de ter tempo para pronunciar o resto: “tende piedade.“
Outro hassidista, um rabi, resolveu prometer ao amigo que o visitaria no dia seguinte: “Como me podes pedir que faças semelhante promessa? Esta noite devo rezar e recitar: “Ouve, ó Israel.”Quando digo estas palavras, a minha alma vai até aos confins da vida. Talvez não morra desta vez ainda, mas como posso prometer agora que farei seja o que for depois da oração?“
 
A prova que faltava da existência de Deus é a sua infinita misericórdia ao ter impedido que durante as JMJ desabasse sobre Lisboa um terramoto como aquele do dia da comemoração de Todos os Santos, em um de novembro de 1755.
 
“Parecíamos dois amantes, ou inimigos mortais, que se tivessem encontrado de surpresa num caminho coberto de ervas, quando pensávamos noutras coisas: um fulminante soco no estômago. Era também um encadeaste golpe no cérebro, ou um súbito choque de cérebros, com toda a força e o rangido íntimo de dois balões que se roçassem. Esvaziou-nos os pulmões. Abateu a floresta, deslocou os campos e drenou o lago; o mundo desmantelou-se e caiu no buraco negro dos nossos olhos. Se eu e qualquer um de vós nos olhássemos assim, os nossos crânios acabariam por se abrir e abater sobre os nossos ombros. Mas não o fazemos. Mantemos os nossos crânios“
Pg 79
 
Que texto lindo!
“ Darwin deu-nos tempo. Antes de Darwin (e Huxley, Wallace e tantos outros) houve, no século XIX o que deve ter sido um período bastante repugnante: as pessoas sabiam que havia fósseis de espécies extintas, mas ainda não sabiam nada sobre evolução orgânica. Pensavam que os fósseis era um lixo de uma série de criações do passado. Seja como for para muitos, esta criação, o mundo como o conhecemos começa em 4004 a. C., uma data estabelecida pelo bispo irlandês James Ussher no século XVII. Estávamos todos agachados numa salsinha, encostados à reconfortante pared do fundo à espera do milénio que vinha a ganhar Ímpeto desde Adão e Eva. Lá em cima existia um universo, e aqui em baixo existia uma pequena fileira de homens surgidos, desaparecidos, criados, ensinados, redimidos e reunidos num só instante luminoso, como uma chuva de confetes rasgados de páginas coloridas, atirados de janelas e varridos das ruas ao amanhecer. A revolução darwiniana derrubou a parede do fundo, revelando paisagens fantasmagóricamente iluminadas e mais antigas do que alguma vez víramos. Quase ao mesmo tempo, Albert Einstein e vários astrónomos com telescópios de reflexão e radiotelescópios derrubaram as restantes paredes e o teto, deixando-nos ao sol, expostos e à deriva - deixando-nos dobras, embora dobras evolutivas, na curva do espaço-tempo. Página 135