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Badameco

Anotações, observações, reflexões sobre quase tudo o que me (co)move

Badameco

Anotações, observações, reflexões sobre quase tudo o que me (co)move

As marcas do tempo

Avatar do autor julmar, 23.12.22

Podence.jpeg 

(Casa em Podence)

Quem pode ficar indiferente a uma casa assim? Abandonada, certamente, há muito tempo, ocultando segredos, guardando histórias de vida, de olhar vazio para a rua, de porta cerrada que há muito deixou de abrir. A parede rota em baixo mostrando o cavername xistoso, a pintura das madeiras em degradé desmaiado pela ação solar, os quadradinhos de vidro, a janela de guilhotina, inteirinhos, salvo o inferior da banda de cima à esquerda que a pedra solta de um garoto, há muitos anos, partiu. E a moldura da janela encolhendo os ombros, indiferente ao incómodo de mim, a aguardar os caretos do próximo entrudo chocalheiro.

Um elogio à douta ignorância

Avatar do autor julmar, 21.12.22

Ao olhar para o título do livro haveria boas razões para não o ler, pois, se alguma coisa aprendemos ao aprender é a descoberta de novos horizontes que nem sequer suspeitávamos. Quanto mais conhecemos mais descobrimos a dimennsão da nossa ignorância. O livro é tudo menos um manual. Mas, pronto, os autores, dois cientistas com nobre missão de divulgar a ciência, são divertidos e, deste modo, nos conduzem a um conhecimento que não se encerra em manuais mesmo que sejam sebentas universitárias. Pessoalmente, sinto sempre desânimo e desconforto quando deixo a física aristotélica ou a física clássica, ou a geometria euclidiana. E, não fossem resultados técnicos que nos proporcionam energia, velocidade, conforto, resolução de problemas extraordinários e poderia dizer que o mundo atómico e as teorias da relatividade, a física quântica e o princípio de incerteza não passariam de lucubrações de mentes loucas. 

O que nos mostra esta novíssima ciência é que nós não conhecemos a realidade, coisa que o filósofo Kant (1724-1804) já nos havia ensinado com o conceito de nómeno (a realidade em si) e o fenómeno (a realidade apreendida por nós). Porém, esta novíssima ciência (pos-neutoniana) consegue fazê-lo de forma experimental e matemática e de uma forma tal que nós e o mundo que nos rodeia deixa de ser apenas um produto de uma longa evolução de milhões de anos .  

O que a ciência nos ensina é não perdermos a cabeça, é não embandeirarmos em arco, é prender-nos aos factos, é contentarmo-nos com aproximações, é saber quão sujeitos estamos ao erro, é sabermos que temos sempre de corrigir, é saber que as avarias fazem parte da viagem, é tomar consciência da nossa pequenez e do milagre (é um modo de dizer, pouco científico) de nos darmos conta de tudo isto. Este foi até hoje o caminho que valeu a pena percorrer: o caminho da douta ignorância. 

"Os nossos olhos ilustram comprovadamente o facto de que a nossa experiência é uma versão altamente editada da realidade. A evolução descobri uma forma de captarmos, processarmos e interpretarmos pacotes básicos de luz nas negras cavidades do nosso crânio. A nossa mente adapta-se às muitas limitações da anatomia para garantir o seu funcionamento -velocidade de fotogramas, ponto cegos, cones defeituosos, visão periférica a preto-e-branco ponto. Nem sequer reparamos nos limites dos nossos olhos, quando construímos a nossa visão subjetiva do mundo, dentro da nossa cabeça. Como todas as criaturas à face da terra, o nosso corpo está cuidadosamente afinado para garantir a continuação da nossa sobrevivência. Mas seria inútil desperdício de ego julgar que ele nos torna capazes de vivenciar a realidade como ela é. Cada um de nós está trancado dentro do seu próprio umwelt (meio), profundamente limitada pelos sentidos, condicionado pela nossa biologia, agrilhoado pelas correntes inescapáveis da nossa história evolutiva. Estamos irremediavelmente presos àquilo que conseguimos descobrir enquanto estamos encalhados neste planeta. Abrirás a abrir parênteses?  (ou perto dele, talvez), como um grão de poeira na vastidão do cosmos. Vemos apenas uma mísera fresta da realidade. Estamos a espreitar para o universo, pelo buraco de uma fechadura."

Camões e Damião, dois viajantes

Avatar do autor julmar, 05.12.22

Continuando com a literatura de viagens neste livro feito de prosa limpa sobre o período áureo da história de Portugal. E, finalmente, a descoberta, para mim, de um conto diferente daquele que aprendemos quando estudantes.

Quanto ao resto, aquilo que eu gostaria de dizer não o conseguiria melhor do que  se encontra na contracapa. Coloquei a negrito o último parágrafo.

E acrescento pequenos extratos da obra que nos falam também da face negra do mesmo período: o tráfico de escravos, a censura, a perseguição aos judeus, a Santíssima Inquisição.

"Estamos em 30 de janeiro de 1574 e Damião de Góis, o arquivista do rei português, está morto - queimado, estrangulado ou afogado. O papel que estava na sua mão pode ser de qualquer canto do império português. Mas o que quer que contenha é provavelmente uma mentira.
Damião de Góis - admirador da cultura etíope, colecionador de arte, historiador e compositor - viveu uma vida extraordinária antes de se encerrar na Torre do Tombo, o primeiro grande arquivo nacional da Europa, instalado numa torre do castelo de São Jorge. E foi aí que as aventuras realmente começaram...
Ao lado da história de Damião de Góis está a história de outro português: Luís de Camões. Considerado por muitos um desordeiro e um falido inveterado, tornou-se, como sabemos, o poeta nacional, publicando o seu épico relato do encontro com a Índia no mesmo ano em que Góis foi condenado pela Inquisição.
As histórias de Damião de Góis e Luís de Camões captam as extraordinárias maravilhas que aguardavam os europeus à sua chegada à Índia e à China, os desafios que estas maravilhas traziam às crenças de longa data, e a vasta conspiração para silenciar as questões colocadas sobre a natureza da história e da vida humana.
Este livro é um mistério de assassinato, o relato de um julgamento inquisitorial, uma história das viagens portuguesas para o Oriente; um catálogo das ideias de Damião de Góis e um conto picaresco das fugas de Camões; um passeio por regiões do mundo moderno que raramente encontramos - o Círculo Polar Ártico, os montes Urais, Madagáscar, o Planalto do Decão.
Mas também é uma história sobre como - e por que razões - as culturas se afastaram da fantástica diversidade do mundo em direção a narrativas monolíticas de caráter nacional, de pureza religiosa e de destino histórico: por que motivo escolheram Camões em vez de Góis?"
 
“ Muitos anos mais tarde, depois de regressar a Portugal, Damião veria uma preocupante lembrança destes dias estouvados na forma de um papel pregado na porta de todas as igrejas de Lisboa: um catálogo de livros proibidos que eram como que uma lista de nomes dos encontros de Damião. Incluídos todos os livros de Lutero e de Melankton, é claro, a maior parte dos de Bucer, além de obras de Munster e de Hélio; também a peça de Gil Vicente Jubileus de Amores que foram um êxito tremendo em Bruxelas. A maior parte da letra D era ocupada por obras de Desidério Erasmo de Roterdão, e para garantir que não se contornava a ordem de entrega daqueles livros afim de serem queimados, havia também uma interdição geral contra todos os livros sem título, ou sem o nome do impressor ou sem autor expresso.
Portugal foi o primeiro país a emitir o índice de livros proibidos, sinistro monumento ao poder da leitura na forma de uma biblioteca dos condenados, que procurava excluir do mundo determinados volumes. O exemplo português seria seguido por outros países, e por fim pelo próprio Vaticano, até grande parte da Europa estar sujeita a tais restrições. Já não era uma questão de se saber se as ações ou palavras de uma pessoa estavam conformes ao que se considerava aceitável; a proibição de livros pretendia nada mais nada menos do que a regulamentação dos lugares silenciosos das pessoas, procurando tornarem visíveis determinadas formas de ver o mundo e tornar impensáveis determinados pensamentos. Estas listas ameaçavam embotar a intensidade da palavra escrita como instrumento de pensamento: se não me é permitido discutir simplesmente com pessoas educadas, refletia um contemporâneo, então não sei para que aprendi a ler. Mas a elaboração destas listas exibia também a natureza frágil da ortodoxia, cujas ilusões coletivas podiam ver-se estilhaçadas por demasiadas pessoas a fazerem as perguntas erradas. Com enorme ironia, estes índices criaram também uma das mais cativantes bibliotecas alguma vez concebidas, uma sala trancada ou arca selada repleta de todos os pensamentos que não era para se pensar, e não demorou muito até a inclusão na lista já não ser uma marca de notoriedade mas sim um emblema de orgulho. Entre os primeiros precedentes do índice português, e talvez entre os primeiros livros sujeitos a proibição de impressão ou importação, estava a tradução de Damião do Eclesiastes e o seu tratado sobre os costumes do povo etíope. Página 204
(...)
Mas os homicídios podem também dar-nos de rompante os contornos concedidos de uma época: a que ponto a vítima representava uma ameaça para o modo de viver no mundo para não poder continuar a respirar livremente nesse mundo. Talvez importe menos resolver um homicídio do que o que se testemunhou ao longo do percurso, o que pouco menos é do que uma conspiração para esconder o mundo. 
Fazendo eco do grande escritor português Fernando Pessoa, chegamos a Lisboa, mas não a uma conclusão. Apesar da cultura europeia dominante ter optado, ao longo de centenas de anos, pela visão monolítica e eurocêntrica de Camões em detrimento da visão infinita e poli fónica da história de Damião de Góis, reações de abertura e inquiridoras de algumas pessoas inícios do século XVI perante novos encontros culturais não se perderam por completo. Por volta da mesma altura em que Damião era preso pela Inquisição, outro intelectual excêntrico confinados numa torre cheia de papéis e livros depois de virar as costas ao mundo exterior assolado pela guerra determinado por via do pensamento quaisquer ilusões pessoais que emboscassem dentro dele este homem Michael, Michael de montanha viria a dizer de modo muito mais explícito nos e nos seus ensaios que ficou sempre implícito no trabalho de mim de Damião o encontro: o encontro com a cultura de todo o Globo que tinham ideias tão diferente sobre tantos aspetos da da vida, desde comer e jejuar, passando pela roupa, pelo tempo, pela astronomia, pelo sexo e pelo gênero, sugeria que não havia nada de inevitável, necessário ou inerentemente melhor e muitas ideias e crenças europeias. Em vez disso era apenas a perspetiva de 11 olhada fazia parecer que esta era a única maneira natural de fazer as coisas, perspetiva reforçada a todo momento para outros aspetos da Cultura, desde as maneiras à mesa e os códigos de vestuário até aos estilos de construção e outras coisas. Na verdade, ontem iria ainda mais longe do que isso, expandindo a sua demolição do Eurocentrismo é um assalto total as presunções de antropocentrismo. A sua análise levou a concluir que as mesmas práticas que nos levaram erroneamente é acreditar na nossa superioridade cultural tinham também construído uma falsa noção da nossa diferença quanto os outros animais. Não estamos nem acima nem abaixo das outras coisas, escreveu ele: a diferenças, a ordem os graus; mas é tudo subordinado a mesma natureza. Apesar de ter lido muitos livros durante os 10 anos em que sincero na sua biblioteca na Torre, uma das suas mais profundos influências, e das maiores fontes de informação sobre outras culturas, foi um volume de um português chamado Jerónimo Osório da Fonseca, que Montagne elogiou como o maior historiador da época. Ainda que Montaigne não parecesse ter noção disso, De Rebus Emanuelis, de Osório, era simplesmente uma tradução latina quase palavra por palavra da crónica sobre o rei D. Manuel escrita por Damião de Góis. Pág. 277