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Badameco

Anotações, observações, reflexões sobre quase tudo o que me (co)move

Badameco

Anotações, observações, reflexões sobre quase tudo o que me (co)move

Breviário Mediterrânico

Avatar do autor julmar, 27.11.22

Breviário Mediterrânico - 1

“Há viagens depois das quais o nosso olhar deixa de ser o mesmo e outras em que até o nosso passado se transforma. “

 O livro, como a comida ou a bebida, só se sabe provando a que sabe.  Desaprovo a frase feita, tida como irrefutável "A primeira impressão é a que fica". A minha primeira impressão da cerveja, do whisky, do tabaco, da filosofia e de outras coisas que para aqui não são chamadas foi, não digo horrível, mas desagradável, até aprender a gostar. Passa-se o mesmo com os livros. O primeiro livro de que me lembro ter gostado a sério chamava-se "O Mediterrâneo em Chamas". A minha aprendizagem da cultura greco-romana foi favorecida por essa leitura. No meu gosto por literatura de viagens, acrescentado neste ano por excelentes leituras, conta-se o "Breviário Mediterrânico". Não é, propriamente, um livro de leitura fácil: Não é um romance, não é um documentário, não é uma narração histórica, não é uma descrição geográfica, não é um ensaio filosófico, não é poesia, nem música, nem pintura, mas tem um pouco de tudo isso. Provavelmente, não há uma maneira melhor de mostrar a diversidade mediterrânica. Trata do mar, sobretudo do mar, porque tudo se inclina para ele e pelos rios escorrem as águas e, com elas, os homens e as suas vidas. Tudo vai dar ao mar. 

“Os itinerários dos mercados correspondem aos da fé. Onde se separaram estalaram os conflitos. Nos mercados do Mediterrâneo, as vendas são às vezes menos importante que o mercadejar, os negócios deixam-se ultrapassar pela paixão do comércio “.
(...)
O cais, Porto, o molhe e a ponta do navio, a praça pública, o mercado e a venda de peixe, o estaleiro naval, os espaços que roodeiam as fontes ou faróis, que contornam igrejas ou mosteiros, os cemitérios e o próprio Mar torna-se assim, de tempos a tempos, palcos e teatros de ar livre. Lá se representa diversos papéis, insignificantes ou fatais, comédias e dramas, quotidiano e eternos. Os séculos estamos cheios de espectáculos destes.” 88
(...)
A gente do Norte assimila muitas vezes o sul ao Mediterrâneo: Qualquer coisa para ele, mesmo quando permanece apegada à sua terra natal. Mais que a simples necessidade de um sol quente e de uma luz mais viva. Não sei se é permitido qualificar isto de “fé no sul”. É possível uma pessoa, independentemente do lugar onde nasceu e onde vive, tornar-se mediterrânica. A Mediterrâneidade não se herda , adquire-se. É uma distinção, não uma vantagem. Não se trata apenas de história ou de tradições, de geografia ou de raízes de memória ou de crenças: o Mediterrâneo é também um destino. "

Teoria da viagem

Avatar do autor julmar, 14.11.22

Teoria da Viagem

Regresso à conversa com Michel Onfray - uma conversa breve, depois da longa conversa sobre "O declínio do Ocidente". Gosto de geografia, gosto da literatura de viagens. Gosto de todos os filósofos que li, mesmo que não esteja de acordo com as suas posições e gosto de da filosofia de Onfray por, além do exercício da razão, partilhar do mesmo caminho. 

Há teorias sobre (quase) tudo o que importa ao homem e as viagens importam muito. O que faz este opúsculo é um esboço de teoria que poderia ser a introdução para uma teoria mais alargada e que abordasse o homem sobre essa perspetiva de Homo Viator, ou de O Viandante e a sua Sombra , só para enunciar  dois títulos de posições tão diversa como são Gabriel Marcel e Fréderic Nietzsche.

As pessoas que desprezam as teorias, afirmando que o importante é a prática é, por norma, gente cega que se acha iluminada que prefere andar de qualquer maneira mesmo que não saiba para onde vai, ou que pensa que a algum lado há-de ir ter. Gente preguiçosa que, quando muito, aceita uma teoria qualquer. É gente sedentária que não tem alma de viajante.

"Na viagem apenas se descobre o que trazemos connosco. O vazio do viajante traduz a vacuidade da viagem; a sua riqueza produz a excelência (...)
“Não viajamos para nos curarmos, mas para nos adestrar, fortalecer, conhecer e apreender mais profundamente (...)

"Musicar o real impele-o a surgir em modos mais facilmente perpetuados (...)
O mundo resiste, contudo às tentativas de ser traduzido em palavras. O o discurso poético permite, sem dúvida, uma aproximação mais subtil, e também mais volátil. Quanto mais imagens e sinestesias, mais o epicentro do real aparece, mas também mais frágil, delicado evanescente se revela. O poema lesse, relesse, medita-se e alcança o éter, provocando incessantemente uma reativação da leitura.(…)
A maioria dos filósofos ignora a geografia.
A história permite pensar a política, mas a escrita da terra-segundo termo grego-não obrém nenhum voto e parece aparentemente inútil à primeira vista. Os dois mundos podem, contudo, comunicar, criando assim uma política de um tipo pré- socrático ou bachelardiano: para isso basta recorrer a uma retórica dos elementos, a uma metafísica da terra e do fogo, a uma ontologia do ar e do éter, a uma lógica das matérias e dos fluxos, numa palavra, a uma estética. A etimologia revela o parentesco da palavra e da faculdade de sentir ou de aprender o sensível. Uma poética de geografia gera uma estética materialista e dinâmica, uma filosofia das forças e dos fluxos, formas e movimentos. (…)
Gosto de ver, quando espreita pelas vigias dos aviões, a geografia encarnada, compreender movimentos que, graças aos coremas de Roger Brunet, se tornam de súbito inteligíveis. Cidades, aglomerados de aldeias, estradas de montanha, geografias caprichosas , a claridade diurna espalhada pelos vales, a sombra nas vertentes das montanhas, a luz nas encostas, as linhas de caminho de ferro, o recortes dos campos, gosto do amarelo da colza, do verde do trigo ainda viçoso, do violeta ou da malva da lavanda, gosto das margens recortadas, das costas do litoral, decorrentes do jogos de cores refletidos no mar, de redes hidrográficas, lagos, riachos, açudes, pântanos transformados pelo sol em intensos espelhos, gosto de ver passar os automóveis, pequenos traços lentos nas estradas, desaparecer os comboios, ao longo de serpentes ondulantes, deslizar as barcaças, pesadas e lentas, ou caminhar os humanos, fúteis e essenciais.
Toda esta diversidade vista do céu resume-se a uma sábia arte combinatória que revela uma verdadeira decifração do mundo, mantendo uma autêntica leitura do real geográfico. O que é afinal a geografia coremática? Um alfabeto de signos, de coremas, capazes de revelar todas as organizações espaciais legíveis nas paisagens. O contemplar indolente debruçado sobre a terra pode, pela vigia, e com ajuda destas categorias da razão pura geográfica, ler, decifrar, compreender, operar inteligentemente através da visão. Do real sensível às categorias inteligíveis o próprio viajante leva a cabo o processo dedutivo, ativa a processão, como seguiria em termos Plotinianos.
Se o viajante e o contemplador se recordar em que a palavra de venda arte de colocar em pespectiva instâncias que, a priori, não possui nenhuma relação entre elas, alcançam o verdadeiro júbilo da inteligência. Uma floresta e uma área, um caminho e uma linha, uma aldeia e 1., uma paisagem e uma rede-porque., linha, área e rede oferecem as quatro entrada que devem ser colocadas em perspetiva com a sete colunas que representam as estruturas elementares do espaço: rede, quadrícula, gravitação, contacto, tropismo, dinâmica territorial, e que era de tia hierarquia. Com ajuda das quatro referências em erro Cisse e dezassete coordenadas obtemos vinte e oito figuras cardeais que nos permitiram decifrar o mundo. Embalados pelo ruído no avião que vem a dança a 1000 m de altitude, podemos então entreter-nos a procurar, e a encontrar, áreas de contacto, canteiros urbanos, cerca de rede, podemos observar disse simetrias em evolução, discernir gráficos, apurar ligações preferenciais, assinalar roturas, distinguir inter faces, seguir linhas de partida de partilha, surpreender redes de estações, caixas de propagação e áreas de extensão, pontos consecutivos e superfícies de tendência a diversidade do Real concreto simplifica-se graças a grelha de leitura muito útilA descodificação daquilo que constitui a paisagem e a natureza. Já no solo, de regresso a terra, habitamos estas figuras transfiguradas depois de surpreendêramos a sua coerência vista do céu. Como  vemo-nos de forma diferente perante um lugar que vislumbrámos previamente do avião, de forma global-Uma palavra que reduzem dúvida esta operação intelectual a forma de um globo, de uma espera esfera perfeita como uma mónada de live nisso. Atravessar os campos de força, passar a linha invisível de um interface Continental, transpor um arco, o mesmo estar diante de uma banana azul, exalo que nos faz pensar meditar sonhar."

A minha viagem por África, na pena de Paul Theroux

Avatar do autor julmar, 08.11.22

Talvez Paul Theroux não tenha tido um outro leitor como eu. Adorei esta tão longa viagem que só um longo livro poderia descrever e só um leitor que percorreu, passo a passo, a longa estrada de África, do Cairo à Cidade do Cabo, poderia entender. Já tinha lido o livro sobre África de Joseph Konrad - O Coração das Trevas - , leitura feita em viagem pelo Nilo abaixo, livro que o autor cita com frequência e nos faz sentir a escuridão do continente. Theroux é um homem corajoso, muito corajoso que uma viagem assim, não é para qualquer um. O seu livro não é feito de investigações, de entrevistas ou de histórias, ouvidas em hoteis de cinco estrelas,  a personagens engravatados. A matéria do seu livro é feita da terra e da gente dos sítios por onde passou: da fome, da doença, da guerra, do terror, do medo, da sida, das secas e, do outro lado, das ONG's ( os agentes da virtude, a gente dos Land Rovers brancos), dos turistas dos safaris, das elites políticas e da corrupção. 

Harare, Zimbabwe sees water supply cut off today as economic crisis and  drought cripple supplies - CBS News

Deixando o Zimbaué e entrando na África do Sul, faz-nos um breve resumo do que ficou para trás

"Mas Harare não parecia em ruínas. Apesar de estar na bancarrota, Harare. Pareceu a mais agradável das cidades africanas que eu tinha visto até ao momento: Era, indubitavelmente, a mais segura, a mais limpa, a menos poluída, a mais ordenada. Depois do insuportável trânsito do Cairo, do feroz calor de Cartum, das casas de telhado de zinco a cair aos bocados de Adis, da criminalidade de Nairobi, da desorganização de Kampala, da desmoralização de Dar es Salaam, da pobreza de Lilongwe, do desespero de Balantyre e das cicatrizes da guerra da Beira, Harare parecia-me bonita e limpa, a própria imagem da tranquilidade, e as zonas rurais um Éden"

Àfrica minha, de Alexandria á Cidade do Cabo

Avatar do autor julmar, 03.11.22

Viagem por África - Livro - WOOK

Depois da viagem, passo a passo, por África lés a lés, a leitura do livro de Paul Theroux, linha a linha. 

Relativamente recente como cidade, resultante da criatividade de Menelik, que construiu a sua própria capital, Adis Abeba. Era uma povoação comprida, a grande altitude, que parecia uma enorme aldeia de telhados ferrugentos, espalhada por diversas colinas. Tinhas 100 anos, mas apresentava um ar de decrepitude intemporal. Pouco atraente se vista de longe, vista ao perto, era suja e estava a desmoronar-se, cheirando horrivelmente pessoas por lavar e a animais doentes; os muros tresandavam a urina, as vielas estavam intransitáveis devido ao lixo acumulado. Música em altos berros, buzinas de carros, vapores de gasóleo e miúdos incomodativos com lendas de má sorte e dedos insinuantes, e advertências assustadoras, como: “há por aqui, gente má.”

Ler para mudar

Avatar do autor julmar, 02.11.22

Se os livros que lemos não nos mudam, não vale a pena lê-los. Podemos passar uma vida, ou  grande parte dela, a aceitar ou defender ideias que nos parecem racionais e justas. Muitas das vezes são ideias que nos convêm e parecem justificar o que fizémos ou fazemos das nossas vidas. Se o elevador social funcionou para nós é natural que, por auto-estima, nós defendamos que isso se deve ao nosso esforço, à nossa atitude e ao modo como encaramos a vida. De um ponto de vista pessoal faz todo o sentido. Nunca nos meus ascendentes alguém tinha entrado na universidade, nunca alguém tinha tirado uma licenciatura. Vivi as circunstâncias dos colegas de infância e de escola primária e também dos meus sete irmãos. A minha pré-escola foi guardar cabras e ajudar nos trabalhos do campo. Entrado na escola, cada dia, antes de começar e depois de terminar, tinha de ajudar em casa e no campo. Sei quanto custou subir e sinto orgulho por isso. Mas orgulho não é vaidade. Aprendi a pedir ajuda e a ser reconhecido, aprendi o valor do trabalho, aprendi a ser corajoso, perseverante e humilde.  Aprendi a ter sorte. Aprendi a suprir a necessidade e a ganhar tempo para a liberdade para chegar aqui e a este momento em que reflito sobre o que estou a dizer, depois de ler o livro de Sandel, mais um filósofo que se junta a todos os outros que me instruiram. 

Uma coisa é o que fizemos de nós, outra coisa é o que queremos fazer da sociedade, uma coisa é olharmos para o nosso quintal, outra coisa é olharmos para o mundo em que vivemos. Esse descentramento e essa supreação é o que nos pode levar à compreensão da sociedade e colocar como valor superior o bem comum em detrimento da tirania do mérito que justifica desigualdade acelerada e exponenciada, à arrogância de uma crescente minoria e à humilhação e ressentimento de uma crescente maioria de pessoas. Eis o que corrói a sociedade e abre a porta ao populismo. 

Andar até encontrar o Adamastor

Avatar do autor julmar, 01.11.22

Iniciei a viagem em 28 de Setembro, às 6 horas, de 2019 e cheguei à cidade do Cabo em 28-10-2022. Demorei dois anos, nove meses e vinte e oito dias. Percorri 10 135Km. Levantei-me todos os dias para caminha, a maior parte deles antes do nascer do sol. A uma média de 5Km/hora, foram duas mil e vinte e sete horas. Subi nas margens do Nilo até ao largo Vitória. Percorri  países de que aqui fui dando nota. 

Não o teria feito sem muitas ajudas: do meu mestre Gedeão a quem pedi o mantra:

Não há ventos que não prestem /Nem marés que não convenham/ Nem forças que me molestem/ Correntes que me detenham.

Sem a minha oração profana do amanhecer de cada dia:

Avé Júlio, cheio de graça/O universo está contigo/ Bendito és tu entre todos/E abençoado é o fruto das tuas ações

Sem o deus das pequenas coisas que é o deus de todos os que caminham os trilhos da liberdade, e, na parte final, a companhia do Coa, o meu Farrusquinho.

Não há caminhante que vá do norte ao sul de África sem levar bem dentro de si perseverança, humildade  e coragem. Como diz Flaubert, "viajar torna um homem modesto", ao que acrescentaria, sobretudo o homem que viaja a pé.

Cheguei ao cabo, ao Cabo da Boa Esperança, à Cidade do Cabo, lá onde mora a memória do Adamastor que se ergeu assustador como uma barreira entre o mar, o céu e a terra guardadndo o segredo das ìndias

Agora que atravessei o Bojador, onde encontrarei a minha Índia? 

Porém já cinco Sóis eram passados
Que dali nos partíramos, cortando
Os mares nunca d’outrem navegados,
Prosperamente os ventos assoprando,
Quando ũa noute, estando descuidados
Na cortadora proa vigiando,
Ũa nuvem que os ares escurece,
Sobre nossas cabeças aparece.

(...)

39
«Não acabava, quando ũa figura
Se nos mostra no ar, robusta e válida,
De disforme e grandíssima estatura;
O rosto carregado, a barba esquálida,
Os olhos encovados, e a postura
Medonha e má e a cor terrena e pálida;
Cheios de terra e crespos os cabelos,
A boca negra, os dentes amarelos.

(...)
41
«E disse: – «Ó gente ousada, mais que quantas
No mundo cometeram grandes cousas,
Tu, que por guerras cruas, tais e tantas,
E por trabalhos vãos nunca repousas,
Pois os vedados términos quebrantas
E navegar meus longos mares ousas,
Que eu tanto tempo há já que guardo e tenho,
Nunca arados d' estranho ou próprio lenho;