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Badameco

Anotações, observações, reflexões sobre quase tudo o que me (co)move

Badameco

Anotações, observações, reflexões sobre quase tudo o que me (co)move

Os campos de trabalho forçado na União Soviética

Avatar do autor julmar, 30.01.22

Há títulos de livros que se metem connosco, que nos tentam, que não nos saem da cabeça. Um dia na vida de Ivan Denissovitch é um desses títulos que me peresegue desde os anos 70. Chegou a altura, após a leitura de O arquipélago Gulag, do mesmo autor, um preciosíssimo documento sobre os trabalhos forçados no tempo de Estaline pelo que nos ensina sobre um passado que faz parte dos nossos dias. Estaline morreu em 1952, tinha eu um ano. Os campos de trabalhos forçados  continuaram, ainda durante toda essa década. É, um pouco, como a promessa  da utopia de um paraíso na terra se torna num inferno, como a melhor das filosofias acerca do trabalho humano se desvirtua e na prática se torna não apenas numa alienação mas num castigo até à morte.  A completa perversão do pensamento de Marx.

«E as coisas passaram-se assim: em fevereiro de 42 na frente do noroeste cercaram todo o seu exército, e dos aviões não e lançavam nada que comer, porque nem havia aviões. Chegaram a tal ponto que raspado os cascos dos cavalos mortos. E não desses grupos chocado foi feito prisioneiro esteve cativo durante alguns dias, ali mesmo no bosque; cinco deles fugiram e voltaram a esconder-se nos bosques, nos pântanos, e por autêntico milagre alcançaram os seus. Se fossem mais espertos diriam que vagueavam pelos bosques, e nada e os aconteceria. Mas disseram a verdade: fugiram do cativeiro alemão. Do cativeiro? A vossa mãe! A gente fascistas! E para trás das grades. Se tivessem sobrevivido os cinco, talvez ouviste as declarações deles e acreditassem;Mas dois, não havia maneira: estavam combinados, os miseráveis quanto a fuga».

Sucumbir ou salvar-se

Avatar do autor julmar, 27.01.22

Se Isto é um Homem, Primo Levi - Livro - Bertrand

Sucumbir é o mais simples: basta cumprir todas as ordens, comer só a ração, obedecer à disciplina do trabalho e do campo»

(...) Queríamos levar o leitor a considerar como o Lager foi também, e em notável medida, uma gigantesca experiência biológica e social.

Fechem-se entre arames farpados milhares de indivíduos diferentes em idade, condição, origem língua, cultura e hábitos, e obriguem-se, nesse lugar, a um regime de vida constante, controlável, idêntico para todos e abaixo de todas as necessidades; é quanto de mais rigoroso um experimentador poderia instituir para estabelecer o que é essencial e o que é adquirido no comportamento do animal-homem perante a luta pela vida.

Não acreditamos na dedução mais fácil e óbvia: que o homem é fundamentalmente brutal, egoísta e estulto na sua maneira de atuar, quando todas as superestruturas civis lhe são tiradas, e que o "Haftling" seria, portanto, o homem sem inibições. Julgamos, pelo contrário, que, em relação a isso, nada mais se pode concluir, a não ser que, diante da carência e do mal-estar físicos obsessivos, muitos hábitos e muitos instintos sociais ficam completamente silenciados.

Parece-me, no entanto, digno de atenção este facto: verifica-se que existem entre os homens duas classes bem distintas: os que se salvam e os que sucumbem. Outros pares de contrários (os bons e os maus, os sensatos e os insensatos, os cobardes e os corajosos, os desgraçados e os afortunados) são muito menos nítidos, parecem menos congénitos e, sobretudo, admitem graduações intermédias mais numerosas e complexas.

Esta divisão é muito menos evidente na vida comum: aí não é frequente acontecer que um homem se perca, pois normalmente o homem não está só, e no seu subir e descer, está ligado ao destino dos que o rodeiam; pelo que só excecionalmente acontece que alguém cresça sem limites, ou desça derrota após derrota até à ruína. Mais, cada um possui habitualmente recursos, espirituais, físicos e também económicos, capazes de tornar ainda menos provável a eventualidade de um naufrágio, de uma carência perante a vida. Acrescente-se afinada que uma sensível ação de amortecimento é exercida pela lei e pelo sentido moral, que é a lei interior; de facto, considera-se tanto mais civilizado um país quanto mais sábias e eficientes são as leis que impedem ao miserável ser demasiado miserável, e ao poderoso ser demasiado poderoso.

Mas no Lager tudo acontece de outra forma: aqui, a luta para viver é uma remissão, porque cada um está desesperada e ferozmente só. Se um Null Achtzehn qualquer vacilar, não encontrará quem lhe estenda uma mão, mas sim alguém que o deitará abaixo, pois ninguém estará interessado que um "muçulmano" (com esta palavra, ignoro porquê, os velhos do campo designam os fracos, os ineptos, os votados à selecção) a mais se arraste todos os dias para o trabalho; e se alguém, com um milagre de paciência selvagem e astúcia, encontrar uma nova combinação para escapar ao trabalho mais duro, uma nova artimanha que lhe proporcione algumas gramas de pão, procurará manter secreta a forma como o conseguiu, e por isso será estimado e respeitado, e tirará um lucro exclusivo e pessoal; tornar-se-á mais forte, os outros terão medo dele e, por isso mesmo, será um candidato à sobrevivência.

Na história e na vida, parece às vezes vislumbrar-se uma lei feroz, segundo a qual «dar-se-á a quem tiver; tirar-se-á a quem não tiver» No Lager, onde o homem está só e a luta pela vida se reduz ao seu mecanismo primordial, a lei iníqua está abertamente em vigor, é reconhecida por todos. Com os aptos, com os indivíduos fortes e astutos, os próprios chefes gostam de manter contactos, que chegam a ser de quase-camaradagem, pois esperam poder tirar, talvez mais tarde algum proveito. Mas aos “muçulmanos”, aos homens em fase de degradação, não vale a pena dirigir a palavra, pois já se sabe que começariam a queixar-se e a contar o que costumavam comer em casa. Muito menos vale a pena ser-se amigo deles, pois não têm conhecimentos importantes no campo, não comem nada extra-ração, não trabalham em Komandos vantajosos e não conhecem nenhuma forma secreta de organização. E, finalmente, sabe-se que estão aqui de passageme, dentro de poucas semanas, deles ficará apenas um punhado de cinzas num campo não muito longe daqui, e um número de matrícula riscado num livro de registo. Embora envolvidos e arrastados sem tréguas pela multidão inúmera dos outros iguais a eles, sofrem e arrastam-se numa íntima solidão baça, e em solidão morrem ou desaparecem, sem deixar rasto na memória de ninguém.

O resultado deste feroz processo de selecção natural poderia ler-se nas estatísticas do movimento do Lager.  Em Auschwitz, no amo de 1944, dos velhos prisioneiros judeus (não falamos aqui dos outros, pois diferentes eram as suas condições) «Kleine Nummer», dos pequenos números inferiores a cento e cinquenta mil, sobreviviam pocas centenas; nenhum deles era um Haftling comum, vegetando nos Kommandos comuns e pago com a ração normal. Só sobreviviam os médicos, os alfaiates, os sapateiros, os músicos, os cozinheiros, os jovens homosessuais atraentes, os amigos ou patrícios de uma ou outra autoridade do campo; e ainda indivíduos particularmente ferozes, vigorosos e desumanos, desempemhando (em consequência de uma investidura por parte do comnado dos SS, que neste sentido mostravam ter um conhecimento dos homens deveras diabólico) os cargos de Kapo, de Blockaltester, ou outros. E, finalmente, os que sem desempenhar funções particulares, pela sua argúcia e energia conseguiam sempre organizar com êxito, obtendo assim, para além da vantagem material e da reputação, também indulgência e estima por parte dos poderosos do campo. Quem não sabe tornar-se um Organizator, Kombinator, Proeminent (feroz eloquência das palavras!) acaba por se tornar dentro de pouco tempo um “muçulmano”. Uma terceira via existe na vida, onde aliás é norma; não existe no campo de concentração.

Sucumbir é o mais simples: basta cumprir todas as ordens, comer só a ração, obedecer à disciplina do trabalho e do campo»

Gente que conheci - Alberto Bastos

Avatar do autor julmar, 08.01.22

alberto Bastos.JPG

Por vezes, os anos começam assim com a notícia da morte de um amigo. Todos os meus amigos são especiais ou não seriam meus amigos. Não tenho muitos amigos e a maior parte deles começa o nome pela letra A. Coisas do acaso que é também assim que as coisas começam e, também, as amizades. Por acaso, iniciei a minha carreira de professor em Vale de Cambra como a poderia ter começado em qualquer outro lugar, que qualquer um serviria o meu propósito primeiro, o de 'ganhar o pão nosso de cada dia". Mas o pão não é tudo na vida. E ali encontrei gente com quem contruí amizade para o resto da vida. Entre eles o Alberto, regressado da guerra colonial, que como a maior parte dos oficiais , com parte das economias realizadas, compravam um automóvel - Fiat 128, Datsum 1200, Toyota Corola ... -. O Alberto comprou um Austin 1300 de cor vermelha a que mandou aplicar uns cintos de segurança, à época não obrigatórios. 

O Alberto como eu e outros em iguais circunstâncias dávamos aulas e do horário de professor sobrava tempo para correr tabernas, tabernáculos e botequins  de Vale de Cambra e arredores, desde a Ponte da Borbolga, onde íamos mais que pelo vinho pelos olhos verdes e doces da Amélia, à Barragem Duarte Pacheco, à Serra da Freita, às Baralhas, até às terras de Sever onde, no Zé Teimoso, a noite se prolongou na companhia de pitéus e de um vinho verde, bebido à solta sob pretexto que sendo verde não precisava de travão. Fechada a porta, a altas horas da noite, metemo-nos no carro, e a custo, conseguimos chegar a Dornelas. Aí parámos e ficámos até de manhã, por nenhum se sentir capaz de conduzir.

Certo dia, nas férias grandes, apareceu-me à porta de casa de meus pais, na aldeia, o Alberto e o Vitor regressados de uma viagem a Andorra onde, à época,  se satisfaziam os desejos consumistas de várias mercadorias a baixo preço, cumprindo a promessa de uma visita. Ali ficaram uns dias e nunca mais se esqueceram dos fartos pequenos almoços de chouriço, presunto, queijo, pão tudo produtos da casa. 

O Alberto vivia a vida com o mesmo jeito que bebia um copo - com gosto, provando, saboreando, sorvendo até à última gota, partilhando, saudando, rindo, rindo muito, rindo com os outros, por vezes, até não poder mais. E na tentativa de esgotar a vida até ao amâgo, tornava-se poeta e ator, para que na palavra e no gesto a vida toda se realizasse.

Alberto Bastos 1.jpg

Convém
Convém esquecer
olvidar tudo
ó impávido gente!…
Amanhã é outro dia
um novo dia
(um rico dia)
e tudo será diferente.
Que ninguém fique mudo:
cantemos..!

Gulag

Avatar do autor julmar, 04.01.22

E como foi possível que esta obra publicada em Portugal na década de 70, só agora a tenha lido? Na verdade, durante muitos anos, não apenas eu mas muitos na Europa ocidental, entre eles muitos inteletuais, tiveram, por razões várias, em (re)conhecer o que, para além do sólido pensamento de Marx, se passava efetivamente na URSS. Na própria Rússia, durante muitos anos uma grande parte da população não se apercebeu do que efetivamente se passava. É tão tenebroso o que o autor descreve neste livro que, `por vezes, nos interrogamos se aquilo alguma vez pode ter acontecido. 

E, lendo, não resisti a colher uns respigos

“Isto é um erro. Quando tudo se esclarecer soltam-me”.
(...)
“E pronto, eis que te levam. Durante uma detenção diurna há inevitavelmente aquele momento breve, irrepetível, em que te levam-Não às claras, por uma medrosa persuasão , Ou inteiramente às claras, com as pistolas à vista,- te levam através da multidão entre centenas de outros igualmente inocentes e condenados. E não te taparam a boca. Podias e devias por força gritar. Tu vais preso.! Que uns miseráveis disfarçados andam à caça das pessoas! Que as prendem por falsas denúncias.! Que está em curso uma surda pressão sobre milhões de pessoas! E, ao ouvir esses gritos muitas vezes por dia e em todos os pontos da cidade, talvez os nossos concidadãos se insurgissem? Talvez as detenções deixassem de ser tão fáceis!? Mas dos teus lábios ressequídos não sai nem um único som, e a multidão que passa descuidadamente considera-te a ti e aos teus carrascos uns amigos que se passeiam. Eu próprio tive muitas vezes a oportunidade de gritar”
Mais adiante tem uma frase
“Tenho ainda o sentimento confuso que um dia gritarei para duzentos milhões “
 “ Mas nenhum parágrafo do artigo 58 era interpretado de maneira tão ampla e contam ardente consciência revolucionária como o 10º visada “a propaganda ou agitaçãop que contenham um apelo ao derrube momento de rolo demento ou enfraquecimento do poder soviético… E também a difusão, preparação ou conservação da literatura com esse mesmo conteúdo“ página 58.
Na página 59 a cena de bater palmas
“Quem nunca passou fome como os nossos prisioneiros de guerra, não roeu como eles os morcegos que apareciam no campo, não cozeu solas velhas, dificilmente compreenderá a força material invencível que adquire qualquer apelo, qualquer argumento, se atrás dele, para lá dos portões do campo, fumega a cozinha de campo e todo aquele que concorda e logo é alimentado de papas até encher a barriga - ao menos uma vez na vida! Ao menos mais uma vez na vida! Um homem a quem levámos ao ponto de rilhar morcegos, retirámos-lhe nós mesmos qualquer dever não só perante a Pátria mas até perante a humanidade!”Página 114
 
“O que é que nos espera no campo? Compadecendo-se de nós ensinou-nos: - Desde o primeiro passo no campo, cada um tentará enganar-vos e roubar-vos. Não confia em ninguém, além de si próprios! Estejam atentos: não vá alguém preparar-se para vos morder. Depois habituem-se: no campo ninguém faz nada gratuitamente, ninguém faz nada por bondade. É preciso pagar tudo. O mais importante: evitem os trabalhos gerais! Recusem-nos desde o primeiro dia! Se forem parar os trabalhos gerais no primeiro dia, estão perdidos, será para sempre.-Trabalho gerais?
-Os trabalhos gerais são os trabalhos essenciais num campo. Nele se ocupam 80% dos presidiários. E todos eles morrem. Todos. Depois trazem outros novos para os substituir também nos trabalhos gerais. Aí deixarão vocês as últimas forças. E andarão sempre húmidos. E sem sapatos. E serão roubados nos pesos e nas medidas. Alojados nas piores barracas. E não vos tratarão. Só viverão aqueles que não participarem nos trabalhos gerais. Procurem a qualquer preço não ir para o trabalho gerais! Desde o primeiro dia.Página 191
 
Terceira parte-
extermínio pelo trabalho.
“Aquilo que devia ter lugar nesta parte, é insbarcável. Para penetrar nesse sentido selvagem e abarcá-lo, é preciso ter arrastado muitas vidas nos campos-aqueles mesmos campos em que seria impossível, sem privilégio, chegar ao fim de um período de pena, porque os campos foram pensados para o extermínio. A consequência disso é que todos aqueles que colheram mais profundamente, experimentaram mais plenamente estão já na sepultura e não contarão. O essencial sobre esses campos já ninguém o contará nunca mais. E abarcar todo volume desta história e desta verdade ultrapassa as forças de uma única pena. Eu consegui ver o arquipélago apenas através de uma fresta, e não a vida do alto da torre. Felizmente emergiram e emergirão mais alguns livros. Pode ser que nos contos de Kolimá, o leitor sinta mais fielmente a desumanidade do espírito do arquipélago e o limite do desespero humano. Mas o sabor do par pode conhecer-se com um único gol de água.”
Página 211
“O que importa é o resultado, mas o resultado não é a nosso favor” 383
 
Abrir “ pouca pouco revelou-se que a linha que separa o bem e o mal passa não entre Estados, não entre as classes, não entre os partidos, mas passa através do coração de cada pessoa e do coração de toda a humanidade. Essa linha é móvel, oscila em nós com o passar dos anos. Não coração dominado pelo mal, ela preserva um pequeno bastian do bem. Mesmo mais bondoso coração, está arraigado um pequeno canto do mal.
Desde então compreendi a verdade de todas as religiões do mundo: elas lutam contra o mal do homem abrir parênteses em cada homem fechar parênteses. É impossível as possar em expulsar completamente o mal do mundo, mas pode se reduzir em cada homem. Desde então compreendi a mentira de todas as revoluções da história: elas suprima e apenas os portadores do mal do seu tempo (e na pressa, sem fazer distinção, também os portadores do bem), mas o próprio mal ainda aumentado, recebe o nome de herança. Em honra do século XX devemos assinalar o processo de Nuremberga: ele matou a própria ideia do mal, e um pequeníssimo grupo dos homens contaminados por ela. Abrirá(é claro, isto não foi mérito de Estaline, que teria preferido menos explicações e mais fuzil fuzilamentos)-se no século XXI é humanidade não se fizer explodir a si mesma e não se asfixiar, talvez esta orientação triunfo? Isso não triunfar, toda a história da humanidade terá sido o marcar passo no vazio sem qualquer sentido.! Para onde para que caminhamos nós, nesse caso? Já o homem das cavernas sabia golpear O inimigo com um varapau. “Conhece-te a ti mesmo“. Nada favorece tanto despertar em nós do espírito de compreensão como ozinho cómoda reflexões sobre os nossos próprios crimes, faltas, e erros. É por isso que eu volto para os anos da minha prisão e digo, surpreendendo surpreendendo por vezes aqueles que nos rodeiam:-abençoada sejas prisão? Todos os escritores que escreveram sobre a prisão mas que nunca conheceram, consideraram o seu dever a exprimir a sua simpatia pelos primo prisioneiros e amaldiçoar a prisão. Eu, lá estive bastante tempo e lá forjei a minha alma, digo inflexivelmente: abençoada sejas prisão, por teres feito parte da minha vida
página 388
“Quem não trabalha, não come” é o princípio do socialismo. Pg 523