![Recordando a D. Zézinha - VILAR MAIOR, minha terra, minha gente]()
"Quem não sabe o que lhe acontece puxa pela memória para salvar a interpretação do seu conto, pois não é totalmente infeliz quem puder contar a si mesmo a sua própria história” Maria Zambrano
Já tinha dado conhecimento da existência deste livro no blog, Vilar Maior minha terra minha gente. Recentemente, tive uma longa e agradável conversa com a autora que teve a gentileza de me enviar o livro. No mesmo dia que o recebi, o li. Como um romance que tem um sabor diferente pelo conhecimento direto dos personagens e dos lugares. A história de uma mãe e de um filho, a D. Zézinha e o Alexandre a que se acrescenta o pai, o sr Raul e a Adelina, irmã do Alexandre, falecida na infância. Depois, acrescenta-se a família alargada: Os pais da D. Zézinha e a sua madrinha, dona de uma pensão no Sabugal e que a tomou como a mãe que lhe deu atenção e carinho; os pais e irmãos do senhor Raul, uma família urbana a viver numa comunidade rural. O livro gira à volta da relação de uma mãe rígida e austera que quer o melhor para o filho, que na sua obsessão de o tornar o melhor aluno lhe nega o mais importante: o amor concretizado no carinho e a liberdade materializada no brincar. D. Zézinha colocava acima de tudo a sua profissão desenpenhada no contexto dos valores do Estado Novo. O livro é uma história dentro da História. Uma história que começa na Primeira Guerra Mundial, no cocheiro que faz o correio da Guarda para o Sabugal, do casamento do cocheiro com Maria da Graça e do nascimento da Maria José que iria ficar orfã aos quatro anos com a mãe a não saber o que fazer à vida. Valeu-lhe a Adelina que tinha a pensão no Sabugal, onde a Maria José cresce a ver aparecer e desaparecer muita gente importante. Fez a quarta classe como aluna tão distinta e ilustrada que anos mais tarde lhe haveria de valer a convocação para regente escolar estreando-se na função na Arrifana do Côa onde, a tão invulgar acontecimento, entre a muita gente que acorreu, se contava Raul Araújo. Ali nasceu um amor cuja união seria celebrada em 1942. E, em parte da casa, da ilustre família Araujo, na Vila, se instalou o casal. Em 1951, nasce o Alexandre, dando continuidade ao nome de seu avô e de seu bisavô. O périplo de D. Zézinha prossegue de aldeia em aldeia, a partir de agora com o Alexandre, na sua missão de ensinar a ler, a escrever e a contar que, juntamente, com a inculcação dos valores Deus, Pátria e Família completariam o currículo. O futuro é indecifrável e o princípio da década de 60 trouxe muitas novidades: D. Zézinha estava agora na escola primária de Vilar Maior, no edifício acabado de construir do Plano Centenário; o Raul, amparado no magro vencimento da regente, farto de vida sem horizonte, fez como os pobres e mal remediados fizeram, deu o salto para França; o Alexandre, finalmente, deixava a mãe, a caminho do seminário de Beja, onde o fui encontrar um ano depois. E o Alexandre, fora da mãe, no seminário, não iria encontrar nem amor, nem liberdade. Não haviam passado dois anos, e o padre Gaudêncio - o reitor do seminário, uma figura distinta que aparecia à hora do recreio a distribuir o correio pelos alunos, cartas que ele já lera, a quem os alunos cumprimentavam beijando a mão, espalhando perfume por onde passava - dava a pior das notícias à mãe: o Alexandre tem de abandonar o seminário porque não tem vocação. Nova fase de vida do Alexandre, agora num colégio interno da Guarda, o Colégio de S. José, dirigido por padres que pouco diferia do seminário. Porém, o Alexandre crescia e contra a rigidez disciplinar ousou experimentar o sabor do desafio e da desobediência. Gostou e criou amigos.
O princípio da década de 60 também trouxe as guerras do Ultramar que se alimentavam da juventude. D. Zézinha, embora defensora da pátria e do império vivia acabrunhada só de pensar que o seu menino, cada vez mais próximo da idade de soldado, pudesse ir para a guerra. Assim, arquiteta um plano para o Alexandre ir passar as férias a Paris com o pai. Chega e o pai, que não sabia da ida do filho não estava. Levam-no para o grande bairro da lata - Champigny, e fica incrédulo sobre como é possível viver ali. Depois passa a viver com o pai que trabalhava longe e só o via ao fim de semana. Encontros e desencontros, portas fechadas, outras entreabertas, vai-se acertando com a realidade.
D. Zezinha, por cá, sem o seu Alexandre, sem o Raul, perde o amor à profissão. Tira o passaporte e vai ter com eles a França. Como é preciso ganhar a vida, mesmo num ofício que não se gosta, tornou-se porteira.
Uma história que começa nos princípios da República, passa por duas guerras mundiais, por quarenta anos do salazarismo, pelas guerras coloniais, pelo exodo migratório e, felizmente, pelo 25 de Abril.