Vagabundagens intelectuais
julmar, 29.09.21
Relido, 20 anos depois, antes do Badameco vir ao mundo, reencontrei-me num texto que conta um pouco da minha vagabundagem inteletual. E encontro lá o intuir do lugar onde o contar se desdobra em quantidade e em qualidade, em número e em palavra, em poesia e em matemática, na letra e no algarismo - duas linguagens universais aque se deve acrescentar a notação musical. Por aí passa toda a história, contar e contar e cantar
Era uma vez... E=mc2
«Pensemos naqueles romances que não pertencem a nenhum lugar e a nenhum tempo preciso: No Castelo de Argol, O Jogo das Pérolas de Vidro, Héliolpolis .... certamente que em função dos nossos fantasmas ou das nossas fantasias podemos situá-los. mas eles permitem sobretudo ressaltos e ecos São. antes de tudo. matrizes fecundas para o leitor. Que pode construir a seu gosto paisagens, situações e desenvolvimentos improvisados: o trabalho do artista consiste unicamente em erguer as pedras de toque para estas vagabundagens intelectuais. É um pouco a minha ambição aqui. Reduzi ao máximo os reenvios a situações concretas ou a referências histórica: Somente o humor tempera um pouco a frieza lógica. E no entanto, possível que cada um em função das situações que tem de viver ou de analisar elabore a partir dos delineamentos propostos a sua própria construção.» MAFFESOLI
INTRODUÇÃO
Por necessidade do ofício, nos meus arquivos de apontamentos das obras lidas predominam as de carácter filosófico. A par dessas encontram-se algumas de biologia, de história, de psicologia, de pedagogia, uma ou outra de economia e de política, bastantes de literatura incluindo romances e um número razoável de obras de antropologia e de sociologia. Entre estas encontrei um apontamento sobre a obra de Michel Maffesoli “Conhecimento do Quotidiano” em que se encontrava uma nota: “ Importante para o meu objectivo.” Na altura em que redigi a nota estava longe de saber que serviria para um objectivo, diferente do que na altura tinha em mente, que será fazer uma reflexão epistemológica para uma disciplina no âmbito de um mestrado de Relações Interculturais.
Ao reabrir o livro deparo, e foi isso que de imediato me cativou, com uma citação de Marcel Proust e o texto acima transcrito. O suficiente para se estabelecer entre o autor e o leitor a empatia sem a qual não vejo como se possa gastar tempo na leitura. Assim entendida a leitura não é em primeiro lugar a busca do conhecimento, a procura do saber, mas antes o convívio, a troca de ideias, os sonhos, os aplausos, as críticas, oposições. Uma boa leitura, diria, que é aquela que nos obriga a pegar na caneta e a responder agradecendo, sublinhando uma ideia, discordando de outra, ou simplesmente a divagar. Um bom livro como um bom mestre nunca nos ensina apenas aquilo que diz; dá-nos sempre o saber e o sabor de forma desproporcionada.
E se falo aqui de leitura é porque muito do que sabemos e muito do que somos depende do que lemos e da maneira como o fazemos e por que o fazemos sendo as mais inúteis as que são obrigatórias (como é possível haver leituras obrigatórias?) e as que são feitas à pressa (como é possível ler-se à pressa) e as que são feitas com o propósito de ficarmos cultos (componente essencial do enciclopedismo e do pedantismo).
O mais importante só pode ser contado
“Proclamo a minha convicção profunda de que a arte é a missão suprema e a actividade essencialmente metafísica da vida humana” Nietzsche na dedicatória a R. Wagner da obra “A Origem da Tragédia”
A história começa na Grécia. Primeiro, quando à compreensão mítica do universo se sucede a explicação cosmológica com perguntas tão simples como: Do que é que as coisas são feitas ou qual é arquê do universo. Depois, quando Sócrates desiludido da explicação mecanicista de Anaxágoras acerca do mundo se vira para o conhecimento do homem estabelecendo que a razão é o caminho de acesso legítimo para o estabelecimento da verdade sem a qual não é possível nem o belo nem o bem. Sócrates é um obcecado do conceito e a ele tudo sacrifica incluindo a própria vida.
Mas até os mais inveterados racionalistas, não podem escapar à inquietude que o sonho, domínio incontrolável à razão, provoca:
“No curso da minha vida, tinha sido, com frequência, visitado por um sonho, hoje sob uma forma, amanhã sob outra, o qual me aconselhava constantemente a mesma coisa: Ó Sócrates, dizia ele, trata de cultivar a música e dedica-te a isso. Ora eu julgava que àquilo, que na vida passada tinha feito, me exortava e incitava o sonho. Semelhante aos que animam os corredores, assim ele, na minha opinião, me animavam também o que tinha principiado – a dedicar-me à música, pois, não existe música pensava eu, mais excelente que a filosofia, à qual eu me dedico” Fédon 26
Sócrates havia sido condenado à morte, encontra-se na prisão e uma dúvida o sobressalta: E se não é desta música que se trata? Resolveu, então, antes que partisse, compor um hino à divindade versificando uma fábula de Esopo porque, como confessa, “não era apto para a imaginação”.
Nunca anteriormente lhe passara questionar-se se o que não compreendia não seria simplesmente o incompreensível; se não existiria uma região a que a razão não teria acesso; se a arte não seria o correlato necessário da ciência. Platão seu discípulo continua o mestre a ponto de na sua cidade ideal a “República” não haver lugar para os poetas. Paradoxalmente, a melhor forma que Platão encontra para fazer aceder ao mais essencial da sua filosofia – a teoria das ideias – foi através de um processo imagético a “Alegoria da Caverna”. O mesmo procedimento tem para explicar a natureza da alma e as suas virtudes. À inquietante questão metafísica do ser e do devir ( o ser é ou o ser é devir) que havia oposto Heraclito aos Eleatas vai responder dizendo que há dois mundos: o uno, autêntico, real, imutável a que só a alma purificada acede e o mundo sensível, múltiplo, aparente e mutável. Ao dualismo dos mitos e das religiões sucedia-se o dualismo alicerçado no pensamento racional. Assim, o uno se impõe dominador ao múltiplo, a unidade à diversidade, o inteligível ao sensível, a essência à aparência, o ser ao devir. Apolo mata Dioniso, diz-nos Nietzsche, inaugurando o declínio da civilização. A fundação e o brilho da cultura grega estão na diversidade dos seus deuses e na riqueza dos seus mitos. Platão cria o primeiro paradigma do conhecimento por racionalização do orfismo e ancorada no matematismo pitagórico. Conta-se que à porta da sua academia inscrevera a seguinte legenda: “Proibida a entrada a quem não souber geometria.” Esta visão matemática do universo, será retomada por Galileu (para quem o grande livro do mundo está escrito em caracteres geométricos) cuja razão aberta ao mundo sensível gerará o nascimento da ciência do movimento a física - a celeste primeiro a terrestre depois. Se a razão dos gregos era contemplativa a da ciência moderna é activa, prática e instrumental, exigência do contexto económico, geográfico e social. Se em Platão o conhecimento matemático (a razão dianoética) era a condição de acesso às ideias (razão noética) em Galileu a matemática era o instrumento que permitia a quantificação de variáveis que lhe permitia estabelecer as relações invariáveis – as leis. As dificuldades instrumentais, nomeadamente a medição rigorosa do tempo será um incentivo à construção de engenhos da sua medição precisa, de forma que todas as medidas pressupõem essa medida básica do tempo que aliada a uma outra medida – o dinheiro – vão ditar uma nova cultura - a do tempo linear que substitui a do tempo cíclico. Disto nos dá conta SARAIVA (1977) artigo com o ilustrativo título ‘A Seta e o Anel’:
“O dinheiro torna-se a medida universal de todas as coisas, incluindo as pessoas. É uma forma de quantificar o universo, e nisso está de acordo com o espírito científico, que tem por base a matemática e pressupõe que toda a qualidade se reduz a uma quantidade (...) O número é uma invenção humana, destinada a determinar as relações entre as coisas. (...) As coisas são contadas, a nossa relação com elas é contada e incluindo a nossa relação com as pessoas, o tempo passa a ser uma sucessão de unidades abstractas, mas escravizadoras; mede-se o futuro, mede-se o passado, mede-se a esperança, mede-se a actividade. O infinito do instante é relegado para o sonho, que não tem lugar reconhecido nesta ordem quantitativa. (...) o número já não serve para o homem contar, mas para contar o homem. pp. 78-79
O número passou a invadir todos os sectores da actividade humana pública e privada desde a produção à circulação, ao consumo. A própria actividade cívica é invadida pelo número: cada homem vale um voto e as decisões são tomadas por maioria. A democracia como o mercado são quantificadoras.
Também Descartes (1596-1650) pretendeu reduzir o homem a uma completa racionalidade e julgou poder construir uma ciência universal de rigor matemático que haveria de gerar conhecimentos utilíssimos que haveriam de “tornar-nos senhores e possuidores da natureza” e com os quais “se poderia eliminar uma infinidade de doenças, tanto do corpo como do espírito, e até, porventura, do debilitamento da velhice” Discurso do Método, pg 83. Também a obra de Descartes , pai da filosofia moderna, está cheia de metáforas. Com Descartes e Galileu o paradigma quantitativo estabeleceu-se e tomou-se como a única forma válida de conhecimento até porque de facto nascido da mecânica nela conseguia êxitos extraordinários não só pelo conhecimento que permitia como pelas aplicações práticas que eram as que mais interessavam a uma burguesia em expansão. Assim se passava do animismo (que era a concepção dominante em Aristóteles e nos gregos com excepção para os atomistas e para Platão) para o mecanicismo, da interioridade para a exterioridade, do qualitativo para o quantitativo, de certo modo, do espírito para matéria.
Por aí começa a euforia iluminista que descobre a ideia de progresso. A ciência nasce, cresce e prospera e A. Comte vê nela a nova religião que salvará o homem. E é paradoxal que A. Comte ao passar a certidão de óbito a todo o conhecimento não positivo, a toda a narrativa o faça exactamente contando uma história – Os três estádios da evolução do conhecimento humano. Este modelo totalitário do determinismo mecanicista há-de querer com dificuldades insuperáveis aplicar-se às ciências humanas. Com alguns êxitos. E com muitos fracassos. Os factos sociais são coisas, dizia Durkheim.
A confiança neste paradigma dominante ruiu quando se quis aplicar a domínios onde a medição deixa de ser possível: Em primeiro lugar no homem: Depois na própria natureza: Ao nível macrofísico com Einstein e ao nível microfísico, no domínio da mecânica quântica com Heisenberg e Bohr.
SANTOS (2001) diz-nos estarem em gestação novos paradigmas e ele próprio propõe o “paradigma prudente para uma vida decente” p.37. Prudente por não ser apenas um paradigma científico mas por ter de ser também um paradigma social. Este novo paradigma faz um retorno a conceitos, atitudes e métodos o que o paradigma quantitativo havia banido: a historicidade, processo, liberdade, autodeterminação, auto-organização, teleomorfismo, individualidade, subjectividade. Há assim como que uma inversão, isto é, são os conceitos da realidade humana que passam para as ciências maturais. O que SANTOS (2001) traduz, assim:
Já mencionei a analogia textual e julgo que tanto a analogia lúdica como a analogia dramática, como ainda a analogia biográfica, figurarão entre as categorias do paradigma emergente: o mundo que hoje é natural ou social e amanhã será ambos, visto como um texto, como um jogo, como um palco ou ainda como uma autobiografia” p. 45
Por isso é preciso a narrativa, o mito, a alusão porque como diz “O Princepezinho de Saint Éxupéry “O essencial é invisível aos olhos”.
Devemos, então, desistir do paradigma quantitativo? De forma alguma. A física clássica continuará a existir, tal como continuou a existir a física aristotélica que apesar de ‘falsa’ é muito bela e útil no nosso dia-a-dia. Perigoso, como em todos os domínios, é o exclusivismo, o normativismo o imperialismo. Há muitas maneiras de ver o mundo e a ciência moderna não é a única explicação possível e nem sequer poderá ser considerada preferível à metafísica, à religião ou à poesia. Sobre o que é decisivo para o homem nada nos diz. Um dos efeitos da ciência moderna foi tornar-nos incompetentes em muitos domínios e obrigar-nos a um sistema de delegação (como acontece na democracia): Deste modo, qualquer cidadão que é sempre competente nalguma coisa (a sua profissão, pelo menos) é incompetente para tudo o mais. Por isso pede à escola que olhe pelos filhos, ao psiquiatra que trate da depressão, ao advogado da herança, ao gestor do património... Como diz SANTOS (2001) “A ciência moderna produz conhecimentos e desconhecimentos. Se faz do cientista um ignorante especializado faz do cidadão comum um ignorante generalizado.” p. 55
Pela cultura o homem libertou-se do peso do real, ganhou distanciamento que lhe permite o jogo, a arte, a religião, a filosofia. Na diversidade estão contidas as possibilidades que o homem tem de enfrentar. A especialização e uniformização, mesmo na evolução das espécies, é sempre uma ameaça de morte.
Há problemas que não são do foro da ciência ou como já alertara Montaigne “A ciência sem consciência é a ruína da alma”. Por isso, preferimos, para adormecer as nossas crianças, contar-lhes histórias em vez de lhes darmos fármacos. Por isso, lemos romances e poesia, jogamos, participamos em liturgias sagradas ou profanas.
“O homem é um animal que anda sempre com rodeios perante a realidade. A relação humana com a realidade é indirecta, circunstancial, hesitante, retórica, metafórica... Todo o comportamento humano é retórico ... A retórica é uma arte porque é paradigma das dificuldades nas relações com a realidade. A filosofia é a expressão mais sofisticada desse rodeio metafórico feito pelo homem, esse animal simbólico, mesmo nas suas respostas mais rudimentares. As nossas relações estão cheias de eufemismos, sedução e coquetismo, sem que a autêntica conduta consista em suprimir esses acrescentos como se fossem um véu enganoso que ocultasse um fundo real. ( INNERARITY, 1995: 88)
Inconclusão
« Tu misturas de maneira impressionante, nos teus discursos, o véu, a foice e o trigo, e tens razão, já que as coisas estão todas ligadas umas às outras e no Senhor são apenas uma, mas nos nossos olhos estão bordadas no véu da multiplicidade”
Thomas Mann, in Maffesoli, p.121 op. Cit.
Não sabia quando li no início as três primeiras páginas de Maffesoli que por culpa dele iria convocar Sócrates, Platão, Galileu, Descartes, A Comte, Nietzsche, Daniel Innerarity, Saramago, Boaventura Santos entre outros. Por causa destes ficou por reler a obra de Maffesoli cuja forma de entendimento da investigação queria relevar. Sei que não o seguindo, como pretendia, dele não me afastei e apenas segui o convite para “ as vagabundagens intelectuais” e que segui o conselho que ele colhe de Shopenhauer de não atribuir valor senão aos pensamentos que ‘elaborámos e aprofundámos por nossa própria conta’ pg 30
Sobre este livro havia escrito, como referi, num apontamento “Nota: Importante para o meu objectivo” . De que objectivo se tratava, afinal? Escrevia na altura uma monografia da carácter etnográfico sobre uma comunidade rural (referenciada na Bibliografia) e a leitura de alguns livros mais práticos sobre técnicas e metodologias ficariam sem grande valia sem a leitura do livro de Maffesoli donde colhi motivação e inspiração. Para ficarmos encantados, por vezes, é preciso bem pouco. E para quem estuda uma pequena comunidade rural em que não pode deixar de se dar conta do designado “fenómeno social total” é inspirador vê-lo assim descrito na citação de Thomas Mann.