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Badameco

Anotações, observações, reflexões sobre quase tudo o que me (co)move

Badameco

Anotações, observações, reflexões sobre quase tudo o que me (co)move

Por que lemos o que lemos?

Avatar do autor julmar, 31.07.21

Um Escritor Confessa-se, Aquilino Ribeiro - Bertrand Editora

Porquê que numa quase infinidade de leituras possíveis - cada livro é uma viagem - escolhemos umas em detrimento de outras? No caso da que agora terminei, vem na sequência da leitura do Volfrâmio do mesmo autor, de que é difícil desligar. Acrescenta-se o fato do meu amigo A.F., de todas as vezes que nos encontramos, cada vez menos, me lançar sempre a mesma pergunta - Já leste Um Escritor Confessa-se? Tens que ler. 

O meu amigo A.F. andou no seminário e eu também andei. O Aquilino também e na mesma cidade, não no mesmo edifício, de Beja. Tive a mesma infânciade de matriz rural beirã e deparei-me com problemas muito iguais. Até a cidade de Beja e a vida do seminário tinham, ainda, muito de comum. Em tempos diferentes, (Aquilino -1985-1963- contemporâneo da minha avó materna1987-1982), o  mesmo anseio e a mesma luta pela liberdade que viu nascer com o derrube da monarquia e a instauração da República e viu perecer com o advento do Estado Novo. Por mim, vi o derrube do Estado Novo e o advento da liberdade com o 25 de Abril de 1974. Um mês antes, em Março de 1974, republicava-se Um Escritor Confessa-se, com um prefácio extraordinario de José Gomes Ferreira, cuja primeira edição datava de 1951, ano do meu nascimento. Finalmente, o meu amigo A.F. vai ter uma resposta diferente e vai ser uma agradável conversa. 

 

O devorador de livros

Avatar do autor julmar, 26.07.21

Wook.pt - Trabalho: Uma História de Como Utilizamos o Nosso Tempo

Que seria o mundo sem livros, que seria de mim sem livros? Não esqueço o livro sobre livros - O infinito num junco, de Irene Vallejo - que li, entusiasmado, no ano passado. Nos livros está o melhor que os melhores homens pensaram acerca de tudo, do que foi do que é, do que será, do que poderia  ter sido, do real e do imaginário, essa estranha forma de ser real. Cada livro é uma viagem e eu perco-me a viajar. Também este livro é uma longa viagem que começa lá muito no princípio, muito antes de haver viajantes e que nos conta a história do trabalho do universo e do trabalho de quando começou a haver homens. Uma viagem cativante.

Quanto do meu tempo, do meu trabalho é dispendido na leitura?

Máquina Braille

Avatar do autor julmar, 22.07.21

Máquina de Escrever Braille Perkins Brailler

A nossa vida também poderia ser contada com as ferramentas que usámos, com os instrumentos que medeiam entre nós e a natureza, entre nós e os outros. Alguns desses instrumentos adquirem na história individual um valor especial que não tem apenas a ver com o instrumento em si mas com a relação especial que com ele criámos. Pode tratar-se de umas sapatilhas, de uma peça de vestuário, de um relógio, de uma esferográfica ou caneta, de uma navalha, de uma bicicleta ou de um carro, de um rádio ou de uma guitarra. Por vezes, guardamo-los em sítios especiais, outras, apenas na nossa memória. Como esta máquina de braille destinada à escrita de pessoas cegas. Seis teclas e um espaçador são o subiciente para suportar todo o alfabeto e algarismos e, com isso, comunicar na perfeição ciência e saber comum. 

Para mim é um objeto muito especial.  Um serviço de tradução entre alunos e professores. Não sou cego mas transformei escrita normal em escrita braille e reverti esta naquela. Aprender como autodidacta foi o que tive de fazer muitas vezes ao longo da vida com muitas horas de exercitação. Não teria sido real sem o deus das pequenas coisas que me ensinou a humildade, a coragem e a perseverança. E a apreciar e aprender com pessoas que não precisam de olhos para ver e compreender o mundo.

Dois olhares sobre o Volfrâmio

Avatar do autor julmar, 14.07.21

Volfrâmio, Aquilino Ribeiro - Bertrand Editora

Há muito que não visitava Aquilino e fico sem palavras para traduzir a sua riqueza literária. Até poderíamos esquecer o assunto tratado e ficarmos no encadear das palavras, pegar apenas num naco de prosa retratando um personagem ou fazendo a descrição de uma situação ou de um anoitecer:

A noite alapardou-se em cima da terra rotundamente como avejão sobre o ovo que anda a chocar. Um após o outro, apagaram-se rumores da aldeia, balidos de gado, choros de meninos tudo adormeceu, a própria mãe que a meio serão ressonava como um como um órgão, o sobressalto tendo-lhe batido na massa do sangue como uma semanada com os amigos. Ele é que não podia dormir. Há muito que  atiraar o emplastro para casa do Deus verdadeiro. E, sentado na cama, novamente ensaio seu papel. Quando luziu a telha, afundiu-se nas mantas e rompeu a gemer. Gemeu, tornou a gemer, mas a mãe dormia como pedra num poço. Um carro de lavrador atravessou a estrada e meteu aos solavancos pelo caminho da serra: o primeiro que girava ao mato. Gemeu mais forte. A mãe estramontou: - Sentes-te pior, filho?

Acabara há pouco de ler um livro (de que dei conta neste blog) - Lisboa, guerra na sombras de uma cidade de luz, 1939/1945 - que tratava do mesmo tema tendo como cenário a cidade de Lisboa e que acentuava os aspectos políticos da neutralidade de Salazar na II Guerra Mundial e dos jogos diplomáticos e de espionagem concomitantes. Lateralmente dava conta, da pobreza do país e do inebriamento dos exploradores do minério

«Como resultado, houve uma grave perturbação da economia local em algumas partes de Portugal. Pois, como testemunharam as aldeias com minas de volfrâmio, era como se seus habitantes tivessem coletivamente ganhado a loteria. Como muitos ganhadores da loteria, eles não sabiam realmente como gastar ou investir seus ganhos inesperados. Havia histórias de aldeões em áreas de minas de volfrâmio acendendo seus cigarros com notas de escudo. Agentes de ambos os lados da guerra que tentavam comprar volfrâmio nas aldeias se depararam com fraude e engano, e o termo “wolframista” - que significa aproveitador de guerra - entrou no dicionário português»

Ora, esta obra de Aquilino descreve o que se passou nessa época numa comunidade rural e que se repetia em muitas zonas do país. E de fato trouxe uma grande perturbação nos meios rurais e é disso que Aquilino nos dá conta:

Eram substâncias análogas do transcendente e no destino; caíam imprevistamente do céu e vinho matar a fome a multidões igualmente famintas. Todas as canseiras de um dia eram dadas por muito bem empregadas se a noite a sombra dá gula, dobrada para terra, trouxesse na cova da mão duas areias do olho negro. Num plano superior, todas as poucas vergonhas eram desculpadas dado que conduzissem ao enriquecimento. Formava-se uma moral nova com uma nova indústria. Dolo, roubo, mentira falsidade, desde que constituísse em processos de promover o negócio do volfrâmio, tornavam-se ordinários, por conseguinte de prática corrente, discutível ainda, mas admitida. Resultava de tal consenso que procuravam todos empulhar-se  uns aos outros o mais compiscuamente possível, e que falsificar o minério, fritando-o, desencantando- lhe substitutos falaciosos, era um recurso industrial como outro qualquer. Das costeiras do Alva descobrira -se um cabeço cuja areia preta e lustrosa orçavo em seu peso pelo do volfrâmio.

Curiosamente, o romance de Aquilino termina em Liboa, cidade da luz.

 

Edgar Morin. Parabéns, meu grande mestre

Avatar do autor julmar, 09.07.21

Edgar Morin – Wikipédia, a enciclopédia livre

Tenho a grande felicidade de viver num tempo de pessoas extraordinárias em todos os ramos da atividade humana, de um modo particular da Filosofia, da Ciência e da Arte, e, sobretudo, a sorte de poder partilhar o fruto do seu trabalho. Quando nasci, já a vida de Morin (nome adotado nos anos da Resistência) ia nos trinta anos, 1951. Ano em que é expulso do partido comunista, ano em que publica a primeira(?) obra: O Homem e a Morte - Estou a olhar para a estante e ... lá está ela e ao lado As Grandes Questões do Nosso Tempo - e nunca mais esqueci a frase que sublinhei: 'Para o sol e para a morte, o homem não consegue olhar de frente'. Não foi um autor que tenho estudado na faculdade - ao contrário de outros, entre eles - Claude Levy Strauss, Michel Foucault e, sobretudo, Sartre - mas que o fiz por conta própria. Ouvi-o de viva voz, numa conferência sem mais suporte que umas folhitas A5 manuscritas. E das muitas dívidas - felizmente todas de gratidão - que não posso pagar, senão agradecendo - Muito obrigado, meu mestre, e parabéns pela tua boa e longa vida.

O que significa ser humano

Avatar do autor julmar, 01.07.21

Ser Animal, Ser Humano - Livro - WOOK

Já o escrevi anteriormente: Um livro bom é um livro que nos faz bem: torna-nos mais compassivo, mais generosos, mais sabedores, mais felizes. O presente livro faz tudo isso. Também já o escrevi que o importante para quem quer conhecer com fundamento, é desaprender. É o que Descartes, no seu Discurso do Método, nos confessa no início da sua viagem filosófica:

"Fui instruído nas letras desde a infância, e por me haver convencida de que, por intermédio delas, poder-se-ia adquirir um conhecimento  claro e seguro de tudo o que é útil à vida, senti um extraordinário desejo de aprendê-las. Porém, assim que terminei esse estudo, ao cabo do qual se costuma ser recebido na classe do júri dos eruditos, mudei totalmente de opinião. Pois me encontrava embaraçado com tantas dúvidas e erros que me parecia não haver conseguido outro proveito, procurando instruir-me, senão o de ter descoberto cada vez mais a minha ignorância."

A cultura, em geral, e os estudos escolares, em particular, sempre me ensinaram que o homem é um ser especial, um ser excepcional assente na tese aristotélica: O homem é um animal racional. Toda a doutrina cristã assente no dualismo corpo/alma, o corpo prisão da alma, o corpo que precisamos de castigar, o corpo de que precisamos de nos libertar. Aí assenta a moral judaico-cristã, construída sobre essa ruptura entre homem e animal. E a moral é o que orienta o homem na sua acção e reforça a sua visão do mundo e aí começa a nossa cegueira. Ao moralizarmos impedimo-nos de um olhar livre e limpo. Por isso, a vida foi difícil para Galileu e tanos outros; por isso, Darwin foi ridicularizado; por isso, se tenta torcer a razão e a ciência; por isso, talvez, o planeta esteja à beira de uma catástrofe evitável. Porque continuamos com dificuldade em aceitar o que a ciência nos mostra: que os humanos são animais.