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Naquele tempo, volta e meia, apareciam, pela aldeia, forasteiros, daqui e dali, a cuidar de assuntos com que governassem a vida. Vinham da Malhada Sorda os loiceiros com burros carregados de caços e, sobretudo, cântaros de barro bem envoltos em palha que as vias ainda que viáveis eram íngremes. Não vendiam muitos porque, embora a matéria fosse frágil, a segurança e equilíbrio das moçoilas que os transportavam à cabeça era notável. Da mesma procedência vinha o albardeiro que tinha aqui farta clientela, pois que burros os havia de bonde e, coitados deles, era mais o tempo que alombavam cargas e puxavam o arado ou tocavam a roda que o tempo livre para se espojarem ou pastarem. Era, talvez, de todas as vidas a menos invejável mas nenhuma tão preciosa na economia local. Mesmo quando se punha uma albarda enfeitada com o tapete de fitas polícromas e cabresto ensebado e lustroso para as saídas aos mercados e feiras o peso não lhes diminuía no lombo. Por isso, se pode dizer que o albardeiro não tinha mãos a medir entre vender albardas e melenas ou consertar mesmo as mais escolhambadas desde que ainda aguentassem o remendo. Teve visão o velho alfaiate que em vez de ensinar o filho na confeção de vestes de gente, onde não faltavam artífices, o encaminhou na aprendizagem de albardeiro. O filho orgulhoso, mais brincalhão que trocista, comentava:
- Eu faço albardas e o meu pai véstias.
Se vestir os nus é uma obra de misericórdia, eles o faziam durante todo o tempo com o que aproximando-se do reino dos céus, supriam as suas necessidades na terra de uma maneira mais folgada do que a maioria dos que tinham de ganhar o pão com o suor do próprio rosto curvados ao peso da enxada ou atrás da rabiça do arado. E se albardar burros não garante o reino de Deus, era igualmente uma mui digna e nobre profissão.
Foi assim que numa manhã clara daquele dia de Verão, à horta do ti Costa, o Janeca, garoto dos seus cinco anos, cruzando com o casal de vendedores mais o burro com todos os aparatos, se pasmou com a mulher a benzer-se frente às alminhas, afastando os espíritos ruins que andam no mundo para perdição das almas, se dirigiu, no seu fanhosismo congénito, ao irmão:
- Ó Manel, porque é que a mulher fez aquelas moafas todas?
O Manel que já levara umas lambadas na catequese por desconhecimento dos pecados capitais e mais algumas por prática dos pecados veniais, lá lhe arengou uma historieta de anjos e demónios misturada com bruxas a quem é necessário fazer figas quando as lobrigamos para que nada de mal aconteça. Claro que o rapazito, desde o leite do seio materno até ao leite das tetas das cabras que substituíram aquele, se habituou que, além das cabras, das ovelhas, das vacas e do cão Farrusco que a todos protegia dos lobos verdadeiros, havia as sombras, o vento, o frio o calor e outras coisas que não vendo nem ouvindo eram bem reais. Daí lhe fosse fácil a aceitação do céu do, inferno e do purgatório, dos seus habitantes e das peripécias que neles se davam que como iniciante catequético lhe eram reveladas. Habituou-se, assim, a cirandar por estes dois mundos onde a raia era menos nítida que a que atravessava quando ia a Almedilha a comprar umas sandálias novas, onde ao casinhoto da Velha era quase milagre não encontrar um carabineiro que consoante a catadura permitia, ou não, a entrada em terra castelhana.
Nesta procissão profana, meia dúzia de cabras, à frente abria caminho ao rebanho de ovelhas. O Farrusco, ora à frente, ora atrás, cuidava que o cortejo seguisse na estreiteza do caminho público, cortando pela raiz qualquer tentativa de abuso da propriedade alheia. Em compasso cadenciado, ao som dos chocalhos das cabras, das campainhas das ovelhas mais atrevidas e das guisas de algumas malatas, passaram pelo Penicoto a caminho de Vale de Castanheiros. O Manel tinha levado o garoto mais por tomar conta dele do que pelos préstimos de guardador de gado e porque de pequenino é que se aprendem os ofícios como lhe é dado. E também, ainda que desconhecedores do pensamento do chefe da nação, todos punham, por necessidade, em prática o seu conselho: «O trabalho da criança é pouco, mas quem o não aproveita é louco» que junto do provérbio, sempre pronto na boca do compadre Valério, «quem não trabuca, não manduca», constituíam argumentos inabaláveis de uma tese que não carecia de mais prova.
Pelos cabeços primeiro, pelo lameiro depois, lá ia o vivo tratando de meter erva para o bandulho que outro tempo haveria para a ruminar. Quanto ao Janeca, dando cumprimento ao seu apetite insaciável, passaria o tempo de mandonga na mão, não fosse o Manel pendurar a mochila em galho alto a que o garoto não chegasse. Valia-lhe, para enganar o desejo e trocar as voltas ao tempo, a imaginação, muito superior à de D. Quixote, transformando simples lascas de granito mal assente na parede para, manobrando-as para cima e para baixo, julgar estar a trabalhar com uma malhadeira, engenho motorizado que, recentemente, substituíra o mangual de muitos malhadores na debulha do centeio. Tanto se encantou com esta e outras brincadeiras que o sol sumiu no ocaso e o Manel em conversa cerrada com o Augusto Rabeco tocou o gado a caminho de casa sem mais se lembrar do garoto.
Quando chegou a casa as estrelas tinham tomado conta do firmamento e só deu por falta do garoto, quando a mãe o indagou:
- Então, e o Janeca?
Aí, o Manel tartamudeou frases que ele próprio não entendia. E a mãe, já aflita:
- O Janeca, onde está o Janeca?
- Eu no sei. Eu vim com o Augusto Rabeco e cuidei que ele já se tivesse vindo embora -, tendo assim dito metade da verdade.
Verdade mesmo era que do esquadrinhamento dos cantos da casa e logradouros se passou pelas casas da avó Zabel e de outros parentes, se perguntou pelas ruas, largos e quelhas:
- Não viram o nosso João? A resposta era invariavelmente negativa:
- Na senhor, no vimos!
A aflição crescia com o passar do tempo e a escuridão da noite tinha descido sobre a terra. Era daquelas noites de breu cortado pelo salpicado das miríades de estrelas no céu. Foi com este céu que o garoto alimentou a sua imaginação e ouvindo o chocalhar do gado para os lados do Vale da Lapa para onde foi dirigindo os seus passos. Ao longe aparecia um grande luzeiro – a cidade da Guarda - que, para ele que nunca vira mais luz que na procissão de velas da Festa do Senhor dos Aflitos, julgou tratar-se de uma coisa do outro mundo, talvez o Purgatório que as chamas do Inferno lhas pintaram de forma diferente.
Estando a avó Zabel, era ela que mandava:
- Ala, vamos à procura do garoto! Ó senhor João, arranje um candeeiro que eu vou buscar a minha alanterna. Lá se juntaram mais uns poucos para ajudar na aflição pondo-se a caminho de Vale de Castanheiros. Chegados ao cruzamento da horta do ti Costa, o sr João, pai do garoto, ordenou a todos que parassem. Ali nuns escassos metros do caminho o piso era de terra solta. Chegou o candeeiro bem perto do chão na procura do rasto das sandálias que lhe comprara na Almedilha. Era um mapa confuso com peugadas de animais, de homens, mulheres, de crianças mas nem vestígios do desenho que procurava. Para fora tentavam sossegar-se apontando a hipótese plausível que adormecera mas interiormente uma nuvem negra o toldava e lembrava o poço da roda do ti Prata e outros. A presa, não não era assim tão funda de águas, sobretudo agora no estio. Podia ter caído de algum barroco ou de alguma árvore mas a hipótese de um lobo o ter agarrado pairava igualmente na mente de todos.
Chegados a Vale de Castanheiros buscaram e rebuscaram cantos e recantos sem êxito. O pai, clamou em voz que rompia o silêncio da noite:
- Ó Janeca! Ó Janeca! Ó Janeca! E o silêncio era a resposta.
Para os lados da Arrifana latia um cão e lembrou-se o pai que, para aquelas bandas, tinha o Salazar a malhada do gado.
Chegados ao Alto da Janelinha o pai, subido a uma fraga, voltou com todas as forças:
- Ó Janeca! Ò Janeca!
Mas, para desespero o som batido na muralha do castelo, no outro lado da ribeira, vinha em eco de resposta: eça! eca! eca! eca! Era como se alguém se estivesse a divertir com a situação, tanto assim que não ousou voltar a chamar.
Voltaram a caminhar. O petróleo do candeeiro, primeiro, e o azeite da lanterna, depois, esgotaram e ficaram sem as mortiças luzes. Entretanto, começava a anunciar-se tenuemente a aurora com o clarear no horizonte do lado de Espanha.
O cão que ouvira o eco do chamamento e o trote do grupo não voltara a sossegar o que ajudava a localização do redil e passou a ladrar tanto com a aproximação que acordou o pastor que saído da choça estremunhado, perguntou:
- Raio! Quem anda para aí? Ao fazer a pergunta lembrou-se do hóspede que tinha lá dentro. Mandou calar o cão e disse:
- Ó senhor João, olhe que o rapaz está aqui! Está aqui!
O Janeca como se nada se tivesse passado contou que vira uma coisa muito bonita, um lume muito grande lá longe que se calhar era o purgatório e que o homem lhe dera do pão dele e que mamara numa cabra dele e que o embrulhou na manta dele.