Lendo o "Humano e o Divino" de Maria Zambrano, dei comigo a escrever assim:
O mundo é hoje demasiado barulhento, demasiado colorido, demasiado cheio de coisas, de coisas inúteis, atulhado de objectos, de pessoas: reino submerso de massas, de quantidades, de séries, de filas, de atropelos, engarrafamentos; um mundo demasiado cheio de lixo e de luxo. Por isso o espaço diminuiu. A estrada alargou para passarem carros e depois voltou a alargar para passarem mais carros. A quinta com o solar abandonado foi arrasada para construírem habitações, umas por cima das outras para poupar espaço para fazer um espaço comercial mais um health club no sítio onde os garotos jogavam à bola.
E quanto ao tempo ninguém o tem em quantidade suficiente. Ao contrário do espaço que se compra e se vende (e por isso uns têm muito, outros pouco e outros não têm nenhum e por isso têm de pedir por favor para estarem em qualquer sítio porque ainda se não descobriu uma forma de contornar a lei que afirma que os corpos ocupam espaço, embora no parlamento se ergam frequentemente vozes contra a pouca vergonha que é para a nação andarem por aí indivíduos sem nem eira beira por sítios de primeira a espantar o turista e a dar uma imagem que não é a do país real. Verdade seja dita que até já têm sido construídos abrigos para eles) o tempo cada um tem o que tem - vinte e quatro horas por dia durante tantos dias quantos Deus quiser ou a medicina comprar. As pessoas levantam-se com pressa, andam depressa, comem depressa, fornicam depressa, escutam à pressa; de manhã vestem os filhos à pressa, levam-nos à escola com pressa e à noite vão buscá-los com pressa , dão-lhe de comer à pressa, e deitam-nos depressa. Oxalá morram com pressa depressa porque a velhice não corre.
O tempo. Vai e não volta. É irreversível. Só a memória o recupera. Ao contrário do espaço que nos é exterior e nos pode ser usurpado ninguém nos pode tirar o tempo que é nosso.