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Badameco

Anotações, observações, reflexões sobre quase tudo o que me (co)move

Badameco

Anotações, observações, reflexões sobre quase tudo o que me (co)move

Poemas da minha vida

Avatar do autor julmar, 18.07.17

 

 

ALMADA.jfif

O poema maior que conheço. Um dos poemas da minha vida a par de outros dois extensos poemas: O Operário e construção e Sôbolos Rios.

A Álvaro de Campos a dedicação intensa de todos os meus avatares.
Foi escrito durante os três dias e as três noites que 
durou a revolução de 14 de Maio de 1915



Ergo-Me Pederasta apupado d'imbecis, 
Divinizo-Me Meretriz, ex-líbris do Pecado, 
e odeio tudo o que não Me é por Me rirem o Eu! 
Satanizo-Me Tara na Vara de Moisés! 
O castigo das serpentes é-Me riso nos dentes, 
Inferno a arder o Meu Cantar! 
Sou Vermêlho-Niagara dos sexos escancarados nos chicotes 
dos cossácos! 
Sou Pan-Demónio-Trifauce enfermiço de Gula! 
Sou Génio de Zaratrusta em Taças de Maré-Alta! 
Sou Raiva de Medusa e Danação do Sol! 
Ladram-Me a Vida por vivê-La 
e só Me deram Uma! 
Hão-de lati-La por sina! 
Agora quero vivê-La! 
Hei-de Poeta cantá-La em Gala sonora e dina 
Hei-de Glória desanuviá-La! 
Hei-de Guindaste içá-La Esfinge 
da Vala pedestre onde Me querem rir! 
Hei-de trovão-clarim levá-La Luz 
às Almas-Noites do Jardim das Lágrimas! 
Hei-de bombo rufá-La pompa de Pompeia 
nos Funerais de Mim! 
Hei-de Alfange-Mahoma 
cantar Sodoma na Voz de Nero! 
Hei-de ser Fuas sem Virgem do Milagre, 
hei-de ser galope opiado e doido, opiado e doido... 
Hei-d' Átila, hei-de Nero, hei-de Eu, 
cantar Atila, cantar Nero, cantar Eu! 
Sou Narciso do Meu Ódio! 
- O Meu ódio é Lanterna de Diógenes, 
é cegueira de Diógenes, 
é cegueira da Lanterna! 
(O Meu Ódio tem tronos d' Herodes, 
histerismos de Cleópatra, perversões de Catarina!) 
O Meu ódio é Dilúvio Universal sem Arcas de Noé, só 
Dilúvio Universal! 
e mais Universal ainda: 
Sempre a crescer, sempre a subir... 
até apagar o Sol! 
Sou trono de Abandono, mal-fadado, 
nas iras dos Bárbaros meus Avós. 
Oiço ainda da Berlinda d'Eu ser sina 
gemidos vencidos de fracos, 
ruídos famintos de saque, 
ais distantes de Maldição eterna em Voz antiga! 
Sou ruínas rasas, inocentes 
como as asas de rapinas afogadas. 
Sou relíquias de mártires impotentes 
sequestradas em antros do Vício. 
Sou clausura de Santa professa, 
Mãe exilada do Mal, Hóstia d'Angústia no Claustro, 
freira demente e donzela, 
virtude sozinha da cela 
em penitência do sexo! 
Sou rasto espezinhado d'Invasores 
que cruzaram o meu sangue, desvirgando-o. 
Sou a Raiva atávica dos Távoras, 
o sangue bastardo de Nero, 
o ódio do último instante 
do Condenado inocente! 
A podenga do Limbo mordeu raivosa 
as pernas nuas da minh'Alma sem baptismo... 
Ah! que eu sinto, claramente, 
que nasci de uma praga de ciúmes! 
Eu sou as sete pragas sobre o Nilo e a Alma dos Bórgias a 
penar! 
Tu, que te dizes Homem! 
Tu, que te alfaiatas em modas 
e fazes cartazes dos fatos que vestes

p'ra que se não vejam as nódoas de baixo! 
Tu, qu'inventaste as Ciências e as Filosofias, 
as Políticas, as Artes e as Leis, 
e outros quebra-cabeças de sala 
e outros dramas de grande espectáculo 
Tu, que aperfeiçoas sabiamente a arte de matar. 
Tu, que descobriste o cabo da Boa-Esperança 
e o Caminho Marítimo da índia 
e as duas Grandes Américas, 
e que levaste a chatice a estas Terras 
e que trouxeste de lá mais gente p'raqui 
e qu'inda por cima cantaste estes Feitos... 
Tu, qu'inventaste a chatice e o balão, 
e que farto de te chateares no chão 
te foste chatear no ar, 
e qu'inda foste inventar submarinos 
p'ra te chateares também por debaixo d'água, 
Tu, que tens a mania das Invenções e das Descobertas 
e que nunca descobriste que eras bruto, 
e que nunca inventaste a maneira de o não seres 
Tu consegues ser cada vez mais besta 
e a este progresso chamas Civilização! 
Vai vivendo a bestialidade na Noite dos meus olhos, 
vai inchando a tua ambição-toiro 
'té que a barriga te rebente rã. 
Serei Vitória um dia -Hegemonia de Mim! 
e tu nem derrota, nem morto, nem nada. 
O Século-dos-Séculos virá um dia 
e a burguesia será escravatura 
se for capaz de sair de Cavalgadura! 
Hei-de, entretanto, gastar a garganta 
a insultar-te, ó besta! 
Hei-de morder-te a ponta do rabo 
e por-te as mãos no chão, no seu lugar! 
Ahi! Saltimbanco-bando de bandoleiros nefastos! 
Quadrilheiros contrabandistas da Imbecilidade! 
Ahi! Espelho-aleijão do Sentimento, 
macaco-intruja do Alma-realejo! 
Ahi! macrelle da Ignorância! 
Silenceur do Génio-Tempestade! 
Spleen da Indigestão! 
Ahi! meia-tigela, travão das Ascensões! 
Ahi! povo judeu dos Cristos mais que Cristo! 
Ó burguesia! Ó ideal com i pequeno 
Ó ideal ricócó dos Mendes e Possidonios 
Ó cofre d'indigentes 
Cuja personalidade é a moral de todos! 
Ó geral da mediocridade! 
Ó claque ignóbil do Vulgar, protagonista do normal! 
Ó Catitismo das lindezas d'estalo! 
Ahi! lucro do fácil, 
cartilha-cabotina dos limitados, dos restringidos! 
Ai! dique-impecilho do Canal da Luz! 
Ó coito d'impotentes 
a corar ao sol no riacho da Estupidez! 
Ahi! Zero-barómetro da Convicção! 
bitola dos chega, dos basta, dos não quero mais! 
Ahi! Plebeísmo Aristocratizado no preço do panamá! 
erudição de calça de xadrez! 
competência de relógio d'oiro 
e correntes com suores do Brasil, 
e berloques de cornos de búfalo! 
E eu vivo aqui desterrado e Job 
da Vida-gémea d'Eu ser feliz! 
E eu vivo aqui sepultado vivo 
na Verdade de nunca ser Eu! 
Sou apenas o Mendigo de Mim-Próprio, 
órfão da Virgem do meu sentir. 
E como queres que eu faça fortuna 
se Deus, por escárnio, me deu Inteligência, 
e não tenho sequer, irmãs bonitas 
nem uma mãe que se venda para mim? 
(Pesam quilos no Meu querer 
as salas de espera de Mim.

Tu chegas sempre primeiro... 
Eu volto sempre amanhã... 
Agora vou esperar que morras. 
Mas tu és tantos que não morres... 
Vou deixar d'esp'rar que morras 
- Vou deixar d'esp'rar por mim!) 
Ah! que eu sinto, claramente, que nasci 
de uma praga de ciúmes! 
Eu sou as sete pragas sobre o Nilo 
e a alma dos Bórgias a penar! 
E tu, também, vieille-roche, castelo medieval 
fechado por dentro das tuas ruínas! 
Fiel epitáfio das crónicas aduladoras! 
E tu também ó sangue azul antigo 
que já nasceste co'a biografia feita! 
Ó pajem loiro das cortesias-avozinhas! 
Ó pergaminho amarelo-múmia 
das grandes galas brancas das paradas 
e das Vitórias dos torneios-lotarias 
com donzelas-glórias! 
Ó resto de cetros, fumo de cinzas! 
Ó lavas frias do Vulcão pirotécnico 
com chuvas d'oiros e cabeleiras prateadas! 
Ó estilhacos heráldicos de Vitrais 
despegados lentamente sobre o tanque do silêncio! 
Ó Cedro secular 
debruçado no muro da Quinta sobre a estrada 
a estorvar o caminho da Mala-posta! 
E vós também, ó Gentes de Pensamento, 
ó Personalidades, ó Homens! 
Artistas de todas as partes, cristãos sem pátria, 
Cristos vencidos por serem só Um! 
E vós, ó Génios da Expressão, 
e vós também, ó Génios sem Voz! 
ó além-infinito sem regressos, sem nostalgias, 
Espectadores gratuitos do Drama-Imenso de Vós-Mesmos! 
Profetas clandestinos 
do Naufrágio de Vossos Destinos! 
E vós também, teóricos-irmãos-gémeos 
do meu sentir internacional! 
Ó escravos da Independência! 
Vós que não tendes prémios 
por se ter passado a vez de os ganhardes, 
e famintos e covardes 
entreteis a fome em revoltas do Mau-Génio 
no boémia da bomba e da pólvora! 
E tu também, ó Beleza Canalha 
Co'a sensibilidade manchada de vinho! 
Ó lírio bravo da Floresta-Ardida 
à meia-porta da tua Miséria! 
Ó Fado da Má-Sina 
com ilustrações a giz 
e letra da Maldição! 
Ó fera vadia das vielas açaimada na Lei! 
Ó xale e lenço a resguardar a tísica! 
Ó franzinas do fanico 
co'a sífilis ao colo por essas esquinas! 
Ó nu d'aluguer 
na meia-luz dos cortinados corridos! 
Ó oratório da meretriz a mendigar gorjetas 
p'rá sua Senhora da Boa-Sorte! 
Ó gentes tatuadas do calão! 
carro vendado da Penitenciária! 
E tu também, ó Humilde, ó Simples! 
enjaulados na vossa ignorância! 
Ó pé descalço a calejar o cérebro! 
Ó músculos da saúde de ter fechada a casa de pensar! 
Ó alguidar de açorda fria 
na ceia-fadiga da dor-candeia! 
Ó esteiras duras pra dormir e fazer filhos! 
Ó carretas da Voz do Operário 
com gente de preto a pé e filarmónica atrás! 
Ó campas rasas, engrinaldadas, 
com chapões de ferro e balões de vidro!

Ó bota rota de mendigo abandonada no pó do caminho! 
Ó metamorfose-selvagem das feras da cidade! 
Ó geração de bons ladrões crucificados na Estupidez! 
Ó sanfona-saloia do fandango dos campinos! 
Ó pampilho das Lezírias inundadas de Cidade! 
ó trouxa d'aba larga da minha lavadeira, 
Ó rodopio azul da saia azul de Loures! 
E vós varinas que sabeis a sal 
as Naus da Fenícia ainda não voltaram?! 
E vós também, ó moças da Província 
que trazeis o verde dos campos 
no vermelho das faces pintadas! 
E tu também, ó mau gosto 
co'a saia de baixo a ver-se 
e a falta d'educação! 
Ó oiro de pechisbeque (esperteza dos ciganos) 
a luzir no vermelho verdadeiro da blusa de chita! 
Ó tédio do domingo com botas novas 
e música n'Avenida! 
Ó santa Virgindade 
a garantir a falta de lindeza! 
Ó bilhete postal ilustrado 
com aparições de beijos ao lado! 
E vós ó gentes que tendes patrões, 
autómatos do dono a funcionar barato! 
Ó criadas novas chegadas de fora p'ra todo o serviço! 
Ó costureiras mirradas, 
emaranhadas na vossa dor! 
Ó reles caixeiros, pederastas do balcão, 
a quem o patrão exige modos lisonjeiros 
e maneiras agradáveis pròs fregueses! 
Ó Arsenal fadista de ganga azul e coco socialista! 
Ó saídas pôr-do-sol das Fábricas d'Agonia! 
E vós também, ó toda a gente, que todos tendes patrões! 
E vós também, nojentos da Política 
que explorais eleitos o Patriotismo! 
Macrots da Pátria que vos pariu ingénuos 
e vos amortalha infames! 
E vós também, pindéricos jornalistas 
que fazeis cócegas e outras coisas 
à opinião pública! 
E tu também roberto fardado: 
Futrica-te espantalho engalonado, 
apoia-te das patas de barro, 
Larga a espada de matar 
e põe o penacho no rabo! 
Ralha-te mercenário, asceta da Crueldade! 
Espuma-te no chumbo da tua Valentia! 
Agoniza-te Rilhafoles armado! 
Desuniversidadiza-te da doutorança da chacina, 
da ciencia da matança! 
Groom fardado da Negra, 
pária da Velha! 
Encaveira-te nas esporas luzidias de seres fera! 
Despe-te da farda, 
desenfia-te da Impostura, e põe-te nu, ao léu 
que ficas desempregado! 
Acouraça-te de senso, 
vomita de vez o morticínio, 
enche o pote de raciocínio, 
aprende a ler corações, 
que há muito mais que fazer 
do que fazer revoluções! 
Ruína com tuas próprias peças-colossos 
as tuas próprias peças colossais, 
que de 42 a 1 é meio-caminho andado! 
Rebusca no seres selvagem 
no teu cofre do extermínio 
o teu calibre máximo! 
Põe de parte a guilhotina, 
dá férias ao garrote! 
Não dês língua aos teus canhões, 
nem ecos às pistolas, 
nem vozes às espingardas!

– São coisas fora de moda! 
Põe-te a fazer uma bomba 
que seja uma bomba tamanha 
que tenha dez raios da Terra. 
Põe-lhe dentro a Europa inteira, 
os dois pólos e as Américas, 
a Palestina, a Grécia, o mapa 
e, por favor, Portugal! 
Acaba de vez com este planeta, 
faze-te Deus do Mundo em dar-lhe fim! 
(Há tanta coisa que fazer, Meu Deus! 
e esta gente distraída em guerras!) 
Eu creio na transmigração das almas 
por isto de Eu viver aqui em Portugal. 
Mas eu não me lembro o mal que fiz 
durante o Meu avatar de burguês. 
Oh! Se eu soubesse que o Inferno 
não era como os padres mo diziam: 
uma fornalha de nunca se morrer... 
mas sim um Jardim da Europa 
à beira-mar plantado... 
Eu teria tido certamente mais juízo, 
teria sido até o mártir São Sebastião! 
E inda há quem faça propaganda disto: 
a pátria onde Camões morreu de fome 
e onde todos enchem a barriga de Camões! 
Se ao menos isto tudo se passasse 
numa Terra de mulheres bonitas! 
Mas as mulheres portuguesas 
são a minha impotência! 
E tu, meu rotundo e pançudo-sanguessugo, 
meu desacreditado burguês apinocado 
da rua dos bacalhoeiros do meu ódio 
co'a Felicidade em casa a servir aos dias! 
Tu tens em teu favor a glória fácil 
igual à de outros tantos teus pedaços 
que andam desajuntados neste Mundo, 
desde a invenção do mau cheiro, 
a estorvar o asseio geral. 
Quanto mais penso em ti, mais tenho Fé e creio 
que Deus perdeu de vista o Adão de barro 
e com pena fez outro de bosta de boi 
por lhe faltar o barro e a inspiração! 
E enquanto este Adão dormia 
os ratos roeram-lhe os miolos, 
e das caganitas nasceu a Eva burguesa! 
Tu arreganhas os dentes quando te falam d'Orpheu 
e pões-te a rir, como os pretos, sem saber porquê. 
E chamas-me doido a Mim 
que sei e sinto o que Eu escrevi! 
Tu que dizes que não percebes; 
rir-te-has de não perceberes? 
Olha Hugo! Olha Zola, Cervantes e Camões, 
e outros que não são nada por te cantarem a ti! 
Olha Nietzche! Wilde! Olha Rimbaub e Dowson! 
Cesário, Antero e outros tantos mundos! 
Beethoven, Wagner e outros tantos génios 
que não fizeram nada, 
que deixaram este mundo tal qual! 
Olha os grandes o que são estragados por ti! 
O teu máximo é ser besta e ter bigodes. 
A questão é estar instalado. 
Se te livras de burguês e sobes a talento, a génio, 
a seres alguém, 
o Bem que tu fizeres é um décimo de seres fera! 
E de que serve o livro e a ciência 
se a experiência da vida 
é que faz compreender a ciência e o livro? 
Antes não ter ciências! 
Antes não ter livros! 
Antes não ter Vida! 
Eu queria cuspir-te a cara e os bigodes, 
quando te vejo apalermado p'las esquinas 
a dizeres piadas às meninas,

e a gostares das mulheres que não prestam 
e a fazer-lhes a corte 
e a apalpar-lhes o rabo, 
esse tão cantado belo cu 
que creio ser melhor o teu ideal 
que a própria mulher do cu grande! 
E casaste-te com Ela, 
porque o teu ideal veio pegado a Ela, 
e agora à brocha limpas a calva em pinga 
à coca de cunhas p'ró Cunha examinador 
do teu décimo nono filho 
dezanove vezes parvo! 
(É o caso mais exemplar de Constância e fidelidade 
a tua história sexual co'a Felisberta, 
desde o teu primogénito tanso 
'té ao décimo nono idiota.) 
'Té no matrimónio te maldigo, infame cobridor! 
Espécie de verme das lamas dos pântanos 
que de tanto se encharcar em gozos 
o seu corpo se atrofiou 
e o sexo elefantizado foi todo o seu corpo! 
Em toda a parte tu és o admirador 
e em toda a parte a tua ignorância 
tem a cumplicidade da incompetência 
dos que te falam 'té dos lugares sagrados. 
Sim! Eu sei que tu és juiz 
e qu'inda ontem prometeste a tua amante, 
despedindo-a num beijo de impotente, 
a condenação dos réus que tivesses 
se Ela faltasse à matinée da Boa-Hora! 
Pulha! E és tu que do púlpito 
d'essa barriga d'Água da Curia 
dás a ensinança de trote 
aos teus dezanove filhos?! 
Cocheiros, contai: dezanove!!! 
Zute! bruto-parvo-nada 
que Me roubaste tudo: 
'té Me roubaste a Vida 
e não Me deixaste nada! 
nem Me deixaste a Morte! 
Zute! poeira-pingo-micróbio 
que gemes pequeníssimos gemidos gigantes 
grávido de uma dor profeta colossal. 
Zute! elefante-berloque parasita do não presta! 
Zute! bugiganga-celulóide-bagatela! 
Zute, besta! 
Zute, bácoro!! 
Zute, merda!!! 
Em toda a parte o teu papel é admirar, 
mas (caso inf'liz) 
nunca acertas numa admiração feliz. 
Lês os jornais e admiras tudo do princípio ao fim 
e se por desgraça vem um dia sem jornais, 
tens de ficar em casa nos chinelos 
porque nesse dia, felizmente, 
não tens opinião pra levares à rua. 
Mas nos outros dias lá estás a discutir. 
É que a Natureza é compensadora: 
quem não tem dinheiro p'ra ir ao Coliseu 
deve ter cá fora razões p'ra se rir. 
Só te oiço dizer dos outros 
a inveja de seres como eles. 
Nem ao menos, pobre fadista, 
a veleidade de seres mais bruto? 
Até os teus desejos são avaros 
como as tuas unhas sujas e ratadas. 
Ó meu gordo pelintrão, 
água-morna suja, broa do outro v'rao! 
Os homens são na proporção dos seus desejos 
e é por isso que eu tenho a Concepção do Infinito... 
Não te cora ser grande o teu avô 
e tu apenas o seu neto, e tu apenas o seu esperma? 
Não te dói Adão mais que tu? 
Não te envergonha o teres antes de ti

outros muito maiores que tu? 
Jamais eu quereria vir a ser um dia 
o que o maior de todos já o tivesse sido 
eu quero sempre muito mais 
e mais ainda muito pr'além-demais-Infinito... 
Tu não sabes, meu bruto, que nós vivemos tão pouco 
que ficamos sempre a meio-caminho do Desejo? 
Em toda a parte o bicho se propaga, 
em toda a parte o nada tem estalagem. 
O meu suplício não é somente de seres meu patrício 
ou o de ver-te meu semelhante, 
tu, mesmo estrangeiro, és besta bastante. 
Foi assim que te encontrei na Rússia 
como vegetas aqui e por toda a parte, 
e em todos os ofícios e em todas as idades. 
Lá suportei-te muito! Lá falavas russo 
e eu só sabia o francês. 
Mas na França, em Paris - a grande capital, 
apesar de fortificada, 
foi assolada por esta espécie animal. 
E andam p'los cafés como as pessoas 
e vestem-se na moda como elas, 
e de tal maneira domésticos 
que até vão às mulheres 
e até vão aos domésticos. 
Felizmente que na minha pátria, 
a minha verdadeira mãe, a minha santa Irlanda, 
apenas vivi uns anos d'Infância, 
apenas me acodem longinquamente 
as festas ensuoradas do priest da minha aldeia, 
apenas ressuscitam sumidamente 
as asfixias da tísica-mater, 
apenas soam como revoltas 
as pistolas do suicídio de meu pai, 
apenas sinto infantilmente 
no leito de uma morta 
o gelo de umas unhas verdes, 
um frio que não é do Norte, 
um beijo grande como a vida de um tísico a morrer. 
Ó Deus! Tu que m'os levaste é que sabias 
o ódio que eu lhes teria 
se não tivessem ficado por ali! 
Mas antes, mil vezes antes, aturar os burgueses da My 
Ireland 
que estes desta Terra 
que parece a pátria deles! 
Ó Horror! Os burgueses de Portugal 
têm de pior que os outros 
o serem portugueses! 
A Terra vive desde que um dia 
deixou de ser bola do ar 
p'ra ser solar de burgueses. 
Houve homens de talento, génios e imperadores. 
Precisaram-se de ditadores, 
que foram sempre os maiores. 
Cansou-se o mundo a estudar 
e os sábios morreram velhos 
fartos de procurar remédios, 
e nunca acharam o remédio de parar. 
E inda eu hoje vivo no século XX 
a ver desfilar burgueses 
trezentas e sessenta e cinco vezes ao ano, 
e a saber que um dia 
são vinte e quatro horas de chatice 
e cada hora sessenta minutos de tédio 
e cada minuto sessenta segundos de spleen! 
Ora bolas para os sábios e pensadores! 
Ora bolas para todas as épocas e todas as idades! 
Bolas pròs homens de todos os tempos, 
e prà intrujice da Civilização e da Cultura! 
Eu invejo-te a ti, ó coisa que não tens olhos de ver! 
Eu queria como tu sentir a beleza de um almoço pontual 
e a f'licidade de um jantar cedinho 
co'as bestas da família.

Eu queria gostar das revistas e das coisas que não prestam 
porque são muitas mais que as boas 
e enche-se o tempo mais! 
Eu queria, como tu, sentir o bem-estar 
que te dá a bestialidade! 
Eu queria, como tu, viver enganado da vida e da mulher, 
e sem o prazer de seres inteligente pessoalmente! 
Eu queria, como tu, não saber que os outros não valem nada 
p'ra os poder admirar como tu! 
Eu queria que a vida fosse tão divinal 
como tu a supões, como tu a vives! 
Eu invejo-te, ó pedaço de cortiça 
a boiar à tona d'água, à mercê dos ventos, 
sem nunca saber que fundo que é o Mar! 
Olha para ti! 
Se te não vês, concentra-te, procura-te! 
Encontrarás primeiro o alfinete 
que espetaste na dobra do casaco, 
e depois não percas o sítio, 
porque estás decerto ao pé do alfinete. 
Espeta-te nele para não te perderes de novo, 
e agora observa-te! 
Não te escarneças! Acomoda-te em sentido! 
Não te odeies ainda qu'inda agora começaste! 
Enioa-te no teu nojo, mastodonte! 
Indigesta-te na palha dessa tua civilização! 
Desbesunta te dessa vermência! 
Destapa a tua decência, o teu imoral pudor! 
Albarda te em senso! Estriba-te em Ser! 
Limpa-te do cancro amarelo e podre! 
Do lazareto de seres burro! 
Desatrela-te do cérebro-carroça! 
Desata o nó-cego da vista! 
Desilustra-te, descultiva-te, despole-te, 
que mais vale ser animal que besta! 
Deixa antes crescer os cornos que outros adornos da 
Civilização! 
Queria-te antes antropófago porque comias os teus 
– talvez o mundo fosse Mundo 
e não a retrete que é! 
Ahi! excremento do Mal, avergonha-te 
no infinitamente pequeno de ti com o teu papagaio: 
Ele fala como tu e diz coisas que tu dizes 
e se não sabe mais é por tua culpa, meu mandrião! 
E tu, se não fossem os teus pais, 
davas guinchos, meu saguim! 
- Tu és o papagaio de teus pais! 
Mas há mais, muito mais 
que a tua ignorância-miopia te cega. 
Empresto-te a minha Inteligência. 
Vê agora e não desmaies ainda! 
Então eu não tinha razão? 
P'ra que me chamavas doido 
quando eu m'enjoava de ti? 
Ah! Já tens medo?! 
Porque te rias da vida 
e ias ensuorar as vrilhas nos fauteuils das revistas 
co'as pernas fogo de vistas 
das coristas de petróleo? 
Porque davas palmas aos compéres e actorecos 
pelintras e fantoches 
antes do palco, no palco e depois do palco? 
Ora dize-Me com franqueza: 
Era por eles terem piada? 
Então era por a não terem 
Ah! Era p'ra tu teres piada, meu bruto?! 
Porque mandaste de castigo os teus filhos p'r'ás Belas-Artes 
quando ficaram mal na instrução primária? 
Porque é que dizes a toda a gente que o teu filho idiota 
estuda p'ra poeta? 
Porque te casaste com a tua mulher 
se dormes mais vezes co'a tua criada? 
Porque bateste no teu filho quando a mestra 
te contou as indecências na aula?

Não te lembras das que tu fizeste 
com a própria mestra de moral? 
Ou queres tu ser decente, 
tu, que tens dezanove filhos?! 
Porque choraste tanto quando te desonraram a filha? 
Porque lhe quiseste matar o amante? 
Não achas isto natural? Não achas isto interessante? 
Porque não choraste também pelo amante?... 
Deixa! Deixa! Eu não te quero morto com medo de ti-próprio! 
Eu quero-te vivo, muito vivo, a sofrer! 
Não te despetes do alfinete! 
Eu abro a janela pra não cheirar mal! 
Galopa a tua bestialidade 
na memória que eu faço dos teus coices, 
cavalga o teu insecticismo na tua sela de D. Duarte! 
Arreia-te de Bom-Senso um segundo! peço-te de joelhos. 
Encabresta-te de Humanidade 
e eu passo-te uma zoologia para as mãos 
p'ra te inscreveres na divisão dos Mamíferos. 
Mas anda primeiro ao Jardim Zoológico! 
Vem ver os chimpanzés! Acorpanzila-te neles se te ousas! 
Sagra-te de cu-azul a ver se eles te querem! 
Lá porque aprendeste a andar de mãos no ar 
não quer dizer que sejas mais chimpanzé que eles! 
Larga a cidade masturbadora, febril, 
rabo decepado de lagartixa, 
labirinto cego de toupeiras, 
raça de ignóbeis míopes, tísicos, tarados, 
anémicos, cancerosos e arseniados! 
Larga a cidade! 
Larga a infâmia das ruas e dos boulevards 
esse vaivém cínico de bandidos mudos 
esse mexer esponjoso de carne viva 
Esse ser-lesma nojento e macabro 
Esse S ziguezague de chicote auto-fustigante 
Esse ar expirado e espiritista... 
Esse Inferno de Dante por cantar 
Esse ruído de sol prostituído, impotente e velho 
Esse silêncio pneumónico 
de lua enxovalhada sem vir a lavadeira! 
Larga a cidade e foge! 
Larga a cidade! 
Vence as lutas da família na vitória de a deixar. 
Larga a casa, foge dela, larga tudo! 
Nem te prendas com lágrimas, que lágrimas são cadeias! 
Larga a casa e verás - vai-se-te o Pesadelo! 
A família é lastro, deita-a fora e vais ao céu! 
Mas larga tudo primeiro, ouviste? 
Larga tudo! 
– Os outros, os sentimentos, os instintos, 
e larga-te a ti também, a ti principalmente! 
Larga tudo e vai para o campo 
e larga o campo também, larga tudo! 
– Põe-te a nascer outra vez! 
Não queiras ter pai nem mãe, 
não queiras ter outros nem Inteligência! 
A Inteligência é o meu cancro 
eu sinto-A na cabeça com falta de ar! 
A Inteligência é a febre da Humanidade 
e ninguém a sabe regular! 
E já há Inteligência a mais pode parar por aqui! 
Depois põe-te a viver sem cabeça, 
vê só o que os olhos virem, 
cheira os cheiros da Terra 
come o que a Terra der, 
bebe dos rios e dos mares, 
- põe-te na Natureza! 
Ouve a Terra, escuta-A. 
A Natureza à vontade só sabe rir e cantar! 
Depois, põe-te a coca dos que nascem 
e não os deixes nascer. 
Vai depois pla noite nas sombras 
e rouba a toda a gente a Inteligência 
e raspa-lhos a cabeça por dentro

co'as tuas unhas e cacos de garrafa, 
bem raspado, sem deixar nada, 
e vai depois depressa muito depressa 
sem que o sol te veja 
deitar tudo no mar onde haja tubarões! 
Larga tudo e a ti também! 
Mas tu nem vives nem deixas viver os mais, 
Crápula do Egoísmo, cartola d'espanta-pardais! 
Mas hás-de pagar-Me a febre-rodopio 
novelo emaranhado da minha dor! 
Mas hás-de pagar-Me a febre-calafrio 
abismo-descida de Eu não querer descer! 
Hás-de pagar-Me o Absinto e a Morfina 
Hei-de ser cigana da tua sina 
Hei-de ser a bruxa do teu remorso 
Hei-de desforra-dor cantar-te a buena-dicha 
em águas fortes de Goya 
e no cavalo de Tróia 
e nos poemas de Poe! 
Hei-de feiticeira a galope na vassoura 
largar-te os meus lagartos e a Peçonha! 
Hei-de Vara Magica encantar-te Arte de Ganir 
Hei-de reconstruir em ti a escravatura negra! 
Hei-de despir-te a pele a pouco e pouco 
e depois na carne-viva deitar fel, 
e depois na carne-viva semear vidros, 
semear gumes, 
lumes, 
e tiros. 
Hei-de gozar em ti as poses diabólicas 
dos teatrais venenos trágicos do persa Zoroastro! 
Hei-de rasgar-te as virilhas com forquilhas e croques, 
e desfraldar-te nas canelas mirradas 
o negro pendão dos piratas! 
Hei-de corvo marinho beber-te os olhos vesgos! 
Hei-de bóia do Destino ser em brasa 
e tua náufrago das galés sem horizontes verdes! 
E mais do que isto ainda, muito mais: 
Hei-de ser a mulher que tu gostes, 
hei-de ser Ela sem te dar atenção! 
Ah! que eu sinto claramente que nasci 
de uma praga de ciúmes. 
Eu sou as sete pragas sobre o Nilo 
e a Alma dos Bórgias a penar!... 
de José Almada Negreiros 
poeta sensacionista 
e Narciso do Egipto




A terra do sr Fernando

Avatar do autor julmar, 04.07.17

Orca Terra

Mais que uma vez, falei de uma personagem ímpar que, por seu valor, se impôs na comunidade de Vilar Maior, de seu nome completo Fernando Boavida Castelo Branco. Passou a ser ratado como senhor Fernando ou senhor Fernandinho pela frente. Por trás, movidos por inveja, alcunharam-no de Areias.  Dele se pode sizer que chegou, viu e venceu combinando um jeito especial para o negócio com uma grande dose de sorte. Numa comunidade a viver ainda ao modo medieval, numa economia de troca de favores e de relações de patrocinato, introduziu como exclusivo valor de troca o dinheiro. Com ele chegou a motorização a Vilar Maior, proprietário de três automóveis e de uma malhadeira movida a motor.  

Fernandinho da Orca. De uma terra, que de acordo com a descrição da autora, era muito semelhante a Vilar Maior. O que levou o senhor Fernando a romper com a cultura de origem?