Pessoas e lugares da minha vida - A minha manhã submersa
julmar, 24.10.15
Fui o que ali está no meio daqueles todos. E quanto há em mim, passados mais de cinquenta anos, da criança, que ali está! Não me deixei ir, resisti ao medo, á pressão, à violência. Tempo houve que os ouvi e até quis acreditar, até dei tempo ao tempo, até ajoelhei e rezei para crer.Temi pela minha perdição desenhada em palavras ameaçadoras, retratada em slides mostrando a imensa fornalha do Inferno. Confessava-me com a regularidade estabelecida inventando pecados que não cometera o que tornava o acto da confissão pecaminoso também. Tudo era pecado apesar do cuidado posto em retirar a ocasião. Por isso, a comida do refeitório era colocada numa roda giratória para que não pudesse ver as mulheres que a haviam confecionado. Mulheres só a Nossa Senhora de Fátima no seu alto e luminoso altar, padroeira do Seminário. Fiz sacrifícios diários, ou os inventava para registo obrigatório num caderninho que depois mostrava ao meu diretor espiritual. Que foi de ti, meu caderninho? Ouvi, vezes sem conta, até saber de cor, a preleção do cónego Gonçalves que servia de mote à meditação diária: "Muitos são os chamados e poucos os escolhidos" (Mateus, 22-14). Porém, uma luz ia crescendo em mim, uma luz que todos queriam apagar e que, para manter acesa a tinha que esconder. E quanto mais, de fora, a queriam apagar, mais forte crescia em mim. Deixei mesmo que se prolongasse esse ataque para que pudesse estar preparado para no futuro não ter que seguir senão aquilo que ela me ditasse. Não deixei que esses sete anos da minha vida fossem coisa inútil, antes pelo contrário, com eles aprendi a construir as bases do meu futuro. Acalentada essa luz, protegida de tormentas, ventos e tempestades, logo que pude deixei que desabrochasse e resolvi dedicar-lhe toda a minha vida. Por isso, me dediquei ao estudo da filosofia; por isso tentei ao longo dos anos mostrar aos meus alunos a importância de cultivar a luz que temos em nós, mesmo quando a luz exterior parece ter apagado a nossa, ela reaparecera sempre que a escuridão chegar. E, por vezes, a noite é longa.