Conferência Gaia Nascente
Introdução
Quero manifestar o meu gosto redobrado por poder estar convosco, pois, não é por obrigação mas por devoção. Um gosto por poder ouvir o Dr António da Fonseca sobre questões importantes para nós enquanto cidadãos e enquanto especialistas que somos em educação.
Um gosto por termos uma oportunidade de aprendizagem.
E pelo tema, que só muito depois de proposto julgo ter visto a sua importância e interesse para os professores - Transições -, que pela sua conotação semântica me arrastou logo para a minha dimensão central de filósofo e para expressão metafísica do PANTA REI (tudo corre) de Heráclito ou à trilogia dialéctica hegeliana da tese, antítese e síntese. Ou, ainda, à elucidativa compreensão etimológica do viajar -via agere - fazer via, fazer caminho que nos reporta ao "Homo Viator" de Gabriel Marcel; ou ainda ao peripatetismo aristotélico como metáfora de rejeição de um ensino imobilista, sedentário, sentado. Bem diferente dos nossos, o teu liceu, Aristóteles!
Sócrates deu-nos o método na procura do saber, mas, doutores que nos tornámos, privilegiamos o ensinar ao aprender. Deu-nos o exemplo de como viver, mas que achamos impraticável num clima de hedonismo consumista e irresistível. Sociedade sofista. Sociedade relativista, não de ausência de valores mas de equiparação de valores sendo o dinheiro o valor que tudo afere.
Já nem sequer é o "homem a medida de todas coisas", como dizia Protágoras, mas o dinheiro. Liberdade, dignidade têm o preço do cifrão, mandando às urtigas a preciosa distinção entre coisas e pessoas do expoente do iluminismo alemão I. Kant.
Temos, hoje, demasiada informação, bastante conhecimento e, crescentemente, menos sabedoria.
Faltam-nos elites cultas que criem sentido para o coletivo das comunidades. Um sentido que se colhe na história e com que se projeta o futuro que o Estado Novo com o enviesamento ideológico, que conhecemos, não descurou.
Na obsessão do combate ao deficit financeiro (como se este não fosse o resultado de todos os outros deficits), na emergência dos problemas que nos afetam, na busca de soluções imediatas ... cortam na formação, no conhecimento, na cultura, na filosofia, na educação artística, nas humanidades, sem contestação.
Por isso, temos comentadores ilustríssimos (vg Ângelo Correia), presidentes de confederações ( vg da Indústria), ministros ( vg da Saúde) a falar latim em inglês - aitems em vez de itens. E será pior ao obrigar ao número de 20 alunos para constituição das turmas de grego e latim.
Perdoem-me esta divagação. Mas isto tem tudo a ver com transições.
Pensei em falar-vos das transições de uma pessoa que como pré-escola guardou cabras, que aprendeu da terra e do gado quanto se pode aprender, em part time, antes e depois da escola e nas férias escolares a tempo inteiro, que era de manhã ao pôr do sol.
Que demorava de viagem para um seminário do Alentejo 24 horas de viagem, três das quais a pé para tomar o combóio. Que sofreu todos os traumas próprios dos internatos - quem quiser entender um pouco leia A Manhã Submersa de Virgílio Ferreira - Estudou (muito latim, grego também), brincou, rezou, perdeu a fé para encontrar um deus maior. Foi operário para poder ser filósofo - e teve uma adorável avó que lhe emprestou dinheiro (reembolsados até ao último centavo) para ir para a faculdade. Bacharel encontrou emprego como professor num telefonema de uma cabine telefónica de Oliveira de Azemeis.
Confessou-me ter tido sorte por ter tirado um curso inútil- Filosofia - que, ao tempo, se definia, em termos de graça, como «a coisa com a qual ou sem a qual a gente fica tal e qual». Sorte por ter sido professor de Português, de História, de Antropologia, de Sociologia, de Psicologia, de Estudos Sociais, por ter sido professor no Ensino Especial e no Ensino Superior, mas, sobretudo, por ter sido professor de filosofia.
Ele é um apreciador de coisas inúteis, de coisas que não servem para nada como a filosofia e a arte. Aprendi com ele coisas simples e importantes:
Disse-me, há muitos anos, que não faz sentido querer mudar o mundo sem começarmos por nós. Que precisamos de aprender sempre, todos os dias e que há dois modos de o fazer: com as pessoas e com os livros.
Que não basta fazer as coisas mais ou menos, mas que é preciso fazê-las bem, que é preciso ter como objetivo a excelência, a menos que nos resignemos à mediania.
A educação é demasiado importante para ficar no mais ou menos.
Que não há desculpa para fazer sempre melhor.
Claro que a maioria há-de situar-se sempre na mediania. A excelência requer muito treino, muita prática deliberada. É isso que as nossas escolas precisam.
É essa a oferta que tem de ser feita aos alunos. Precisam de saber que podem ser excelentes, precisamos de lhes indicar o caminho.
Este meu amigo é um caso que, como ele diz, contraria o determinismo sociológico.
Costuma dizer-me que tem sorte.
Eu acho que ele trabalha para a ter. Sorte, tenho eu, em ter um amigo assim.
Júlio Marques