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Badameco

Anotações, observações, reflexões sobre quase tudo o que me (co)move

Badameco

Anotações, observações, reflexões sobre quase tudo o que me (co)move

António Damásio – O Livro da Consciência

Avatar do autor julmar, 17.10.10

 

Imannuel Kant (1724 - 1804) confessou que duas coisas enchiam o seu espírito de admiração e reverência: “o céu estrelado acima de mim” e “a lei moral dentro de mim”.

Tentou o filósofo citado responder especulativamente sobre a possibilidade do conhecimento científico (o mundo dos fenómenos) e sobre a possibilidade do conhecimento metafísico (o mundo dos nómenos). Havia de se entusiasmar Kant, se lhe fosse dado conhecer a obra de Damásio. Muito do que ele de forma especulativa supôs encontraria aqui suporte empírico bem como um contributo às perguntas que se colocava: - O que posso saber? O que devo fazer? O que posso esperar? O que é o homem?

O que a investigação neurológica nos traz é a possibilidade de compreensão do fenómeno mais extraordinário na história da evolução que é o nascimento do eu enquanto possibilidade de representação de si e do meio, enquanto possibilidade de representação do passado (memória) e de representação do futuro (imaginação) e de na conjugação das duas se construir o Eu e a sociedade na invenção da cultura.

«O problema de como tornar esta sabedoria compreensível, transmissível, aplicável em termos muito simples, de fazer com que ela pegasse, foi enfrentado e uma solução encontrada. Contar histórias foi a solução – a narração de histórias é algo que o cérebro faz de forma natural e implícita. Essa implícita criou o nosso eu e não deve surpreender que esteja tão disseminada por todo o tecido das sociedades e das culturas humanas. Também não deve surpreender que as narrativas socioculturais fossem buscar a sua autoridade aos seres míticos que se imaginavam ter mais poder e conhecimento que os humanos, seres cuja existência e cuja acção tinha a faculdade de proporcionar auxílio e modificar o futuro». Pag. 357  

Com o avanço tecnológico na investigação do complexo sistema nervoso humano, ficamos a aguardar – depois de O Erro de Descartes, O Sentimento de Si, Ao Encontro de Espinosa e O Livro da Consciência – a nova obra de Damásio onde o mistério possa recuar um pouco mais.

A República em Vilar Maior - Parte III

Avatar do autor julmar, 12.10.10

Indo-lhes na pista

É o título do desmentido que o padre Matias faz do citado artigo onde lhe são feitas acusações algumas já atrás expendidas outras novas como a de Que fizera um casamento à maõ esquerda, dizendo aos noivos que fazia assim porque depois que entrou a republica tudo se faz às avessas!(...) Que fui de hábitos talares e relicário ao pescoço de Villar Maior à quinta do Carvalhal a dar o Senhor a um enfermo.(...) Que fiz uma procissão depois do sol posto. (...) Que eu devo saber as causas da minha expulsão.

Sei e muito bem. A minha expulsão é uma sequência da borracheira que o snr X fez apanhar na sua taberna a meia dúzia de rapazes para correrem com o snr padre Fonseca que antes de mim ia substituir o snr padre Oliveira, como para mim próprio se gabou...

            Belmonte 10 - 4 - 913. Padre Júlio Mathias

            O padre Júlio Matias não refere que tal artigo no “Combate” era uma resposta a um artigo “Mais uma violência Despótica” publicada no jornal “A Guarda”, no dia 16/03/1913, no nº 387. Aí se dá conta da expulsão do padre Júlio Matias atribuindo-a às raivas da demagogia triunfante e aí são citados os nomes dos seus autores, um deles professor de Badamalos. Estranha-se, ainda no artigo, o facto de nenhum administrador anterior ao padre David ter conseguido a expulsão.

            No distrito da Guarda a luta ideológica passava pelos dois jornais semanários da cidade : “O Combate”, defensor do regime republicano e dirigido por José Augusto Castro e a “Guarda” opositor das ideias republicanas , defensor do catolicismo. Atacam-se mutuamente e o caso de V. Maior deve ter sido uma das gotas de água que levou a que este seminário  tenha sido suspenso. Em 23 de Março aparece o jornal “A Velha Guarda” (nitidamente a substituir o anterior) e em 11 de Abril aparece a “Guarda Avançada”, em 30 de Agosto o “Jornal a Guarda”, até que em 23 de Fevereiro de 1914 surge de novo “A Guarda, após julgamento e absolvição do semanário.

 O padre Júlio Matias regressou novamente a pároco de Vilar Maior e era muito querido pelos seus fregueses. Em 1924 ainda aí era pároco. Os seus méritos foram reconhecidos pois, mais tarde, tornou-se cónego do cabido da Sé da Guarda.

In, Memórias de Vilar maior, minha terra minha gente

 

 

Uma história da emigração

Avatar do autor julmar, 10.10.10

 

 

«No alto do cabeço, o barbeiro tirava o cigarro da boca, como se o desembaraçasse do bigode, chegava-o ao pavio e fazia cara feia enquanto segurava o foguete de braço esticado, a jorrar fagulhas, antes de o largar. Era um bicho ruim que queria ser solto. Mal podia, num ruído de lixa, esfregava no ar e estourava uma bola de fumo no céu, espécie de nuvem anã. De pescoço dobrado para trás, o Ilídio e o Cosme encostavam as mãos à testa para verem esse efeito. A cana, desarmada, indefesa, via-se sem pé e deixava-se cair sobre os campos, coitada.

E as gajas? O Cosme chegou à frente para responder.»

A República em Vilar Maior

Avatar do autor julmar, 07.10.10

 Parte II

 

Segunda Investida

            Os Kagados esperaram três anos uma ocasião para deitarem a cabeça de fora. A ocasião surgiu, assim relatada:

            Havia perto da Egreja parochial uma casa chamada a casa da fabrica que nos fins d’agosto de 1911 foi devorada por um incendio. Resolveram reconstrui-la para casa das sessões da commissão parochial e lá a teem hoje - meza redonda, meia duzia de cadeiras, etc. Uma imitação dos doze de Inglaterra. Um mez e tal antes de começarem os trabalhos da reconstrucção, mandam buscar dois carros de telha, e tendo imensos palheiros onde a arrecadarem, collocam-na no templo. E eis delineado o trama: - o templo é nosso, visto estar descrito no arrolamento das alfaias eclesiásticas que está em nosso poder. Vamos collocar nelle a telha com o que muito se arreliará o padre, visto ela destinar-se a um fim puramente profano. Se elle, como é provável, de lá a mandar retirar, processamo-lo por mandar retirar uma coisa nossa d’um logar onde só nós mandamos.

            Mas fizeram mais. Abrem de par em par as portas e introduzem os carros no templo.

            Eram cinco horas da tarde quando me abeirei da Egreja onde deparei com este indecoroso espectaculo que no género disparate atinge o récord.

            Adverti-os do abuso, convidei-os a emendá-lo, sendo-me respondido entre varias e torpes blasfêmias que ali só elles mandavam.

            Afastei-me um pouco para ver se conseguia acalmar o meu espírito. E como a fita das blasfemias continuasse a desenrolar-se, intimei-os a calarem-se, não em atenção a mim mas ao logar onde se encontravam e a emendar o abuso, sob pena de ...             Procurou o regedor e não o encontrou. Entardecia. Mandou tocar os sinos e mudar o Santíssimo para a Igreja da Misericórdia onde exerceu o culto  até que as mulheres num trabalho hercúleo, retiraram a telha da Egreja. Eram cinco horas e meia da tarde  do dia 11 de setembro de 1912. Umas nuvens cinzentas paiarando no occidente nos vedavam o pôr do sol. Não foi preciso mais para que na parte se frisasse que a procissão do Santíssimo tinha sido feita a elevadas horas da noute...

            Dada a impossibilidade de reconciliação fazem-se as respectivas participações ao Administrador. Os Kagados vão ao Sabugal e pressionam o Administrador ameaçando com a sua demissão caso o pároco não fosse expulso da freguesia. Ouvido pelo Secretário em representação do Administrador, disse-lhe que tivesse paciência à semelhança de Jesus Cristo e que nada receasse. No entanto, os ferrabrazes conseguem arregimentar um bando de testemunhas, umas por ameaça, outras com a promessa de encher a barriga de postas de bacalhau amassadas em vinho

            O Adminstrador intima-o a comparecer perante o Governador Civil no dia 11 de novembro de 1912. O governador disse-lhe considerá-lo o maior reaccionário do concelho do Sabugal. Mas expostos os factos ao Governador fica este convencido da inocência do pároco.

            Volvidos quatro meses é nomeado administrador do Sabugal o padre David.  

            No dia 4 de março de 1913 publicava-se um decreto no “Diário do Governo” pelo qual o padre Júlio Matias era expulso do distrito da Guarda pelo tempo de um ano.

Reclamação

            Em carta dirigida ao Presidente da República, reclama, baseado na legislação do Estado e em casos julgados por motivos idênticos e absolvidos, a sua inocência.

De que era acusado?

Reconhece divergências com três elementos da comissão paroquial; Faz o historial dos factos para negar a veracidade ou para à luz das leis da República mostrar não haver infracção:

De ter mudado o local de culto para a Misericórdia devido aos incidentes acima relatados e que assim pretendiam interditá-lo do exercício do culto para o que apresenta como testemunhas Maria Caramella, casada e Isabel Hespanhola, solteira.

Fantasiaram vários e falsos casos factos:

Acompanhamento ao cemitério e fazer-lhe a devida encomendação a horas proibidas por lei, isto é ainda antes do nascer do sol.

Recusa de acompanhar o cadáver de uma filha do presidente da comissão paroquial.

Exercício do culto fora dos lugares a isso destinados.

Andar de hábitos talares.

... o Decreto da minha expulsão pode considerar-se uma verdadeira monstruosidade jurídica (...) Tudo isto prova que o meu castigo é injusto indo até certo ponto d’encontro á missaõ que o regime Republicano tem a cumprir, de tratar todos os cidadãos portuguezes com egualdade, fraternidade e justiça.

Resposta de S. Exª o Senhor Presidente da Republica

Palacio de Belem, 25 de março de 1913

            Ao Rev. Snr Júlio Mathias, dig.º

            Reitor de Villar Maior

                                   Belmonte:

            Encarrega-me Sª Exª o Senhor Presidente da República de dizer a V. S.ª que leu com toda a attenção a reclamação que lhe enviou. Não lhe permittindo os poderes que a Constituição lhe confere prover de remedio à queixa apresentada por V. S.ª, lembra a conveniência de, pelos meios legaes, V. S.ª ao dirigir a S. Exª o ministro da justiça, para obter a justiça a que se julga com direito. Saude e fraternidade.

            O Secretário Geral da Presidência da Republica,

                        Manuel Forbes de Bessa.

           

            Enviei uma copia d’esta reclamação ao Senhor Ministro da Justiça, cuja resposta ainda hoje aguardo.

            Quando Júlio Matias se encontrava no exílio, tentando esquecer os tristes acontecimentos, sai um artigo, assignado pelos três acusadores, no jornal o “Combate”, 12 de Abril de 1913, nº 397 onde ele era acusado.

A República em Vilar Maior

Avatar do autor julmar, 05.10.10

História de uma Perseguição em Vilar Maior

 

Parte I

 

            O conflito entre a Igreja e o novo regime - A República - vivido em todo o país também aqui em Vilar Maior teve lugar

             Datado de 1913 ( ano do exílio em Belmonte), o padre Júlio Matias escreve este opúsculo e dedica-o “Ao povo de Vilar Maior e Badamalos que tão unido se manteve sempre em minha defeza, o preito da minha gratidão

            Nas 24 páginas que o compõem faz o padre Matias o relato de uma perseguição de que foi vítima em Vilar Maior e que determinou o seu afastamento da freguesia e do distrito da Guarda por um ano. Dado o interessedo documento e a bela forma de escrever do seu autor aqui se faz uma síntese, na medida do possível, com o próprio texto do autor. Começa por um prólogo em que faz considerações sobre a República criticando essa falange tosca, imbecil e desordeira que só parece ser avultada por ser turbulenta, e que hoje é tão republicana como ainda ontem era monarchica intransigente.(...)

            Eis, senhores dirigentes da Nação, o processo de que se serviram três Kagados cujos nomes redemoinham nas ruas de Vilar Maior como pó amaldiçoado nos lábios de todos os seus habitantes, e que depois de tantas vezes deitarem a cabeça de fora da concha conseguiram finalmente desterrar-me do território das minhas freguesias, porque do coração dos meus freguezes não são eles nem poder algum d’este mundo capazes de o fazer. E passa ao relato dos factos começando pelo retrato dos Kagados: dois gabirús que, de longínquas terras, onde exerceram os mais rudes misteres, levantaram um dia voo, vindo pousar a Villar Maior, onde em 1910 o acaso os fez respectivamente presidente e vice-presidente da comissão parochial da mesma freguesia; e um outro que, depois de assistir ao epilogo fatal do lúgubre drama, poude cahir tranquilo no campo dos mortos. Sobre este nem uma palavra, nem a mais leve referencia... Sobre os mortos o silêncio perpetuo... E se elle carece do meu perdão, aqui lhe fica consignado.

 

Origem da perseguição

            Em 1910, o bispo decidira substituir o pároco de Vilar Maior conta a vontade de um ferrabraz com quem mantinha relações de interesse privado. O ferrabraz ferido nos seus interesses põe-se a caminho do Paço Episcopal da Guarda na companhia de alguns compadres todos eles fazendo rasgado cumprimento ao Espírito Baccho. O governador do Bispado vendo-os em tão capitosa borracheira, despede-se em silêncio e manda-os em paz. Regressando a casa desiludido, o ferrabraz tão velhaco como a sua ignorância, e mais estúpido que o Castello, pretende conseguir pelo disparate o que lhe é impossível pela razão, valendo-se para isso de um punhado de inocentes creanças que, armando-as de latas e ferros velhos, ensaia para a estonteante comédia que se vai desenrolar.

            Feito o ensaio, o dia em que o novo e inocente pároco chega à aldeia tem esta belíssima recepção: sino tocando a rebate e a batuta instrumentalizada brandindo misturada com a vozearia. È escolhido novo pároco e a nomeação recai sobre o padre Júlio Matias.

 

Primeira Investida

Em Março de 1911 commeteram-se na egreja parochial uns desacatos em que, pela sua gravidade, eu tive que intervir.

Na missa do domingo seguinte, onde não faltaram os Kagados, o padre Matias fez algumas advertências no sentido de mostrar aos freguezes o respeito que é devido ao templo. Foi o suficiente para os Kagados, no fim da missa , se lançarem furibundos para a sacristia fazendo acusações.

            À voz “vão prender o padre”, o povo alvoroça-se num momento, movimentando-se tudo o que estava dentro do templo. Já não havia naifas para tantos homens, nem ... commentários para tantas mulheres. O padre serenou os ânimos exaltados impedindo o linchamento. Tal não impediu que durante as noites seguintes as casas deles fossem apedrejadas.

             A participação seguiu para o Sabugal e, volvidos alguns dias, o regedor intimava o padre e os dois cágados a comparecerem perante o administrador. O povo pretendia a acompanhar o padre mas este não o permitiu, dizendo que a innocencia não precisa de defesa. A élite da freguesia insiste em acompanhá-lo e o padre entendeu que não devia levar outra companhia mais que a razão que me assistia. Não pôde recusar a companhia de António Gata que lhe disse ir não como testemunha de defesa, mas como companheiro de viagem. Ora, os acusadores receando que António Gata fosse defensor do padre envolvem-no na mesma trama acusando-o ao Administrador de inimigo da República. António Gata surpreendido com tal acusação  pede ao Administrador que faça vir de novo à sua presença as “sombras” que tiveram a audácia de o denunciarem como inimigo de um regime a que elle tem consagrado a melhor das suas atenções, que depois de bem as fitar, quer ver com que cara se atrevem a assacar-lhe tão infame acusação.

            Volvidos à presença do administrador, as “sombras”  disseram ser amigas do sr. António Gata , ser elle um bom republicano e só o poderem accusar de ser amigo do sr. Reitor.

            Desfeita a tramóia o administrador já não os deixa sair sem o padre ser ouvido. Acusado de nas homilias e fora delas atacar as leis do divórcio, registo civil e outras  e depois de o padre prestar as suas declarações de novo os acusadores são interrogados negando tudo o que há pouco haviam afirmado e dizendo-se até amigos do padre.

            O Exmº Administrador, nauseado d’ um descaro tão sem igual, levanta-se na sua cadeira e deixa escapar esta phrase de indignação: “ arre diabo! Que nunca vi tanto ódio contra um homem!” depois de os advertir severamente fá-los assinar uma declaração em como o padre nunca havia atacado lei alguma da República.

            Ia já alta a lua na mansão celeste quando eu e o meu companheiro regressamos a Vilar Maior, onde nos aguardava o povo irrequieto, que, ao saber que havia sahido ileso da “bacorada” - como ele chamava à nauseante força - irrompeu n’um delírio de satisfação geral, retirando-se depois em paz.

            Longe do Sabugal, no dia seguinte, os Kagados dizem que se o padre não ficou preso foi por dele terem dó que de joelhos lhes havia pedido perdão.

 

In Vilar Maior, minha terra, minha gente

Júlio Silva Marques