junho 03, 2004
A cultura do insulto
“Eu rio-me nos funerais e choro nas festas
E encontro um gosto suave no vinho mais amargo;
Com frequência tomo os factos por mentiras
E, de olhos postos no céu, caio em buracos.
Mas a voz consola-me e diz-me: «Guarda os teus sonhos;
Os sábios não os têm tão belos como os loucos.”
Baudelaire, La voix
Parece-me a mim que a quadratura com os ângulos que lhe são próprios está a ficar mais circular, perdendo os contornos mais agressivos que a torna mais habitável, mais aconchegada, mais envolvente, mais perfeita. Sabe-se lá se não será por mor dos muitos insultos grosseiros com que, reciprocamente, se mimam os adversários políticos que, como todos os maus artistas carregam nas tintas onde não devem, aumentam decibéis e luzes que ocultem o vazio da sua arte. É tudo gente que tem pressa, que lhe interessa o imediatamente útil, que não tem tempo a perder, que prefere ganhar mal do que perder bem (pressa de chegar a secretário, a ministro, a deputado, ao governo, a Bruxelas); é uma luta pela vida (ou pela vidinha) que não pela cultura. E a pressa dá no que dá: para quê a negociação, a diplomacia, a persuasão se podemos vencer pela espada? Mas num mundo em aceleração quem tem paciência para esperar? Não são apenas os frangos que crescem depressa. Os pais ( que estão bem/mal mal na vida) têm pressa que os filhos aprendam tudo e, por isso, é ver a quantidade de coisas que estas crianças têm que aprender! (ir à música, ao ballett, à natação…). E o maior dos perigos é começar a levar a sério a vida demasiado cedo.
Regressando aos insultos dos nossos políticos eles traduzem a sua incultura, a sua necessidade de strip-tease que à força de se desnudarem a si e aos outros nos oferecem um espectáculo intensamente pornográfico. A cultura só existe quando tem alguma coisa para se esconder e o diálogo só existe quando se acredita poder mostrar alguma coisa ao outro. Neste jogo de ocultação/desocultação se joga a nossa humanidade. A forma de aprender este jogo - brincar. Ora, a linguagem é a instância, por excelência, da cultura enquanto adaptação ao mundo. Por isso, a nossa relação com a realidade é indirecta, tacteante, hesitante, aproximativa, retórica, cosmética, uma espécie de sedução amorosa. Deste modo, o que insulta revela-se na sua nudez bestial dos instintos primários tão necessários à vida na selva.
É tempo de nos volvermos à cultura e, de um modo especial, os políticos pela sua especial responsabilidade nos nossos destinos. Sigam o conselho de Pacheco Pereira (que pena este homem metido na política, digo-o muito a sério)! Olhem para o céu! Foi a olhar para o céu que o homem descobriu a terra! A sério ainda, que não conheço nenhuma frase tão emblemática no avanço da cultura e do conhecimento como esta. É verdade que Tales caiu num poço por andar a olhar para o céu e que a sua criada trácia se riu a bandeiras despregadas da distracção do filósofo. Mas, entre outros espécimes, o mundo é mesmo assim: feito de filósofos e de criadas – quando aqueles pedem para olhar os céus, estas perguntam onde estão as cartas da astróloga Maia (assim se chama?)
Luís Leonardo