Eusébio, Camões e o Panteão - Afonso Leonardo
julmar, 08.01.14
Camões diz o que se propõe com a obra que inicia: cantar os feitos dos portugueses:
«Cantando espalharei por toda a parte
Se a tanto me ajudar o engenho e arte»
«Aqueles que por obras valerosas se vão da morte libertando»
A obra Os Lusíadas terá sido concluída em 1556 e publicada pela primeira vez em 1572. Tudo isto há cerca de 450 anos, não vai assim há tanto tempo, bastante para as nossas curtas vidas. Mas, como o poeta bem sabia e bem o disse: Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades.
Não havia futebol no tempo do Camões e as ‘obras valerosas’ eram de outra natureza.
No país onde o impossível acontece, onde os milagres explicam o inexplicável, onde os deuses do Olimpo se reúnem para deliberar sobre a giesta portuguesa, onde um rei português derrota cinco reis mouros numa desproporção de cem infiéis para um cristão, pudemos ver Camões, na televisão, com um olho apenas, como que a mostrar que em terra de cegos quem tem um olho é rei, a falar sobre o King Eusébio da Silva Ferreira.
Conta Camões que a seu pedido, e para continuar a narrar os feitos dos portugueses, S. Pedro lhe concedera a graça, de poder ter umas saídas precárias lá do assento etéreo onde subira, e vir até esta babilónia cada vez mais confusa. Conta que Sião, essa pátria celeste, é tão boa, tão deleitosa que só mesmo a morte do Eusébio o poderia fazer sair de lá; que pelo que foi sabendo, depois que à pátria ditosa subira, nada se passou que lhe valesse a pena de na pena pegar; que depois que se fora se foi sucedendo um rosário de desgraças e se instalou, com caráter definitivo, uma apagada e vil tristeza; que os reis cada vez mais fracos foram tornando mais fracas as fortes gentes até acabarem com os reis … e nada ter mudado. Conta que, ainda que, na pátria celeste nada afete a plenitude do descanso eterno, não é indiferente aos céus o que se passa na terra e que a compaixão é a maior componente da felicidade eterna. Por isso, dileto da mãe de Deus, a quem ofertara o seu poema preferido «Sôbolos Rios» e «Os Lusíadas», intermediou junto dela para que se apiedasse do “ilustre peito lusitano, a quem Neptuno e Marte obedeceram». E logo a Senhora, rogando ao Filho que rogasse ao Pai, se deu início a todos os preparos para a descida da Senhora que havia de, regenerando Portugal, fazer dele a plataforma para pôr ordem no mundo o que se faria rezando o rosário para conversão da Rússia que não tinha jeito nenhum os comunistas atacarem a Igreja e mal dizerem Deus. E a veia dos poetas começou logo a inventar versos e o génio musical a adorná-los para glorificar o povo eleito e o reino dos céus:
Salve, nobre padroeira
Do povo teu protegido
Entre todos escolhidos
Para povo do Senhor
Fátima, diz Camões, ainda um dia (isto é como quem diz porque lá em cima já não há dias apenas os resplendores da luz perpétua) a cantarei.
Diz Camões que a única música que se ouve nos céus é a música celestial (o que faz todo o sentido), e que a única música terreal que ganhou esse estatuto foi o Fado que de tão plangente e triste provocou a compaixão celeste e que, se o corpo da Amália, está no Panteão Nacional, a sua essência (que no céu só podem existir essências) se encontra no assento etéreo.
O Fado nasceu um dia,
quando o vento mal bulia
e o céu o mar prolongava,
na amurada dum veleiro,
no peito dum marinheiro
que, estando triste, cantava,
que, estando triste, cantava
Amália, a Diva do Fado, que deu voz a poemas meus, diz Camões, ainda um dia (isto é como quem diz porque lá em cima já não há dias apenas os resplendores da luz perpétua) a cantarei.
Fátima, a Senhora do Rosário, estava na pátria celestial, o Fado por que celestial chegou lá, mas o Futebol, Senhor?
Camões, fechou o olho, meteu a mão no queixo sustentando a cabeça e ficou em silêncio tão prolongado que o jornalista, lhe atirou:
- Então, senhor Luís de Camões, acha que o Eusébio deve ir para o Panteão Nacional?
Deixe-me dizer-lhe que ao Eusébio tanto se lhe faz. E falo com conhecimento. Fui sepultado em 1580 na Igreja de Sant’Ana, em Lisboa, perto da casa onde vivia a minha mãe. Passados 300 anos, em 1880, pegaram numas ossadas de um qualquer e trasladaram-nas para os Jerónimos dizendo que eram os meus restos mortais. Os portugueses são um grande povo que cuida mal dos vivos e se preocupa muito com os mortos. Também podem dizer do Eusébio o que de mim disse o Almada Negreiros:
«A pátria onde Camões morreu de fome e onde todos enchem a barriga de Camões»
Mas como não cantar o futebol, essa descoberta (ainda que não portuguesa), maior que a descoberta das Índias e das Américas e do seu maior executante?
Eusébio da Silva Ferreira diz Camões, ainda um dia (isto é como quem diz porque lá em cima já não há dias, apenas os resplendores da luz perpétua) o cantarei.