Primeira Leitura do ano
julmar, 06.01.14
Quase ficamos sem palavras para falar da escrita de Valter Hugo Mãe, como ficamos sem palavras na contemplação da beleza. As obras, a presente também, são acima de tudo literatura e não são aconselháveis a quem gosta de uma trama criadora de suspense. A história principal acaba por resultar da interseção de muitas histórias. A obra é de um profundo humanismo que rejeitando a transcendência a procura incessantemente, numa consciência de que Deus não existe mas não podemos viver sem ele.
«O tempo não é linear. Preparem-se sofredores do mundo, o tempo não é linear. O tempo vicia-se em ciclos que obedecem a lógicas distintas e que se vão sucedendo uns aos outros repondo o sofredor, e qualquer outro indivíduo, novamente num certo ponto de partida. É fácil de entender. Quando queremos que o tempo nos faça fugir de alguma coisa, de um acontecimento, inicialmente continuamos os dias, às vezes até as horas, e depois chegam as semanas triunfais e os largos meses e depois os didácticos anos. Mas para chegarmos aí temos de sentir o tempo também de outro modo. Perdemos alguém, e temos de superar o primeiro inverno a sós, e a primeira primavera e depois o primeiro verão, e o primeiro outono, e dentro disso, é precisoque superemos os nossos aniversários, tudo quanto dá direito parabéns a você, as dtas da relação, o natal, a mudança dos anos, até a época dos morangos, o magusto, as chuvas de molha tolos, o primeiro passo de um neto (...) e também é precisosuperar a primeira saída de carro a sós. O primeiro telefonema que não podeser feito para aquela pessoa. A primeira viagem que fazemos sema sua companhia (...) o livro que lemos em absoluto silêncio. O tempo guarda cápsulas indestrutíveis porque, por mais dias que se sucedam, sempre chegamos a um ponto onde voltamos atrás, a um início qualquer, para fazer pela primeira vezalgu,a coisa que nos vai dilacerar impiedosamente porque nessa cápsula se injecta também a nitidez do quanto amávamos quem perdemos, a nitidez doseu rosto, que por vezes se perde mas ressurge sempre nessas alturas, atê o timbre da sua voz, chamando o nosso nome ou, mais cruel ainda, dizendo que nos ama com um riso incrível pelo qual nos havíamos justificado em mil ocasiões no mundo» (pg 125)