O lastimável estado do ensino em Portugal
julmar, 12.06.13
Este post foi publicado emFevereiro 15, 2004
O artigo que se segue foi escrito há mais de dez anos. Veja como o monstro continua a tornar-se mais monstruoso!
Os exames a nível nacional que acabamos de realizar deveriam ter, para além dos erros e erratas que em si são coisas de somenos, a virtude de nos fazer olhar de frente para o sistema de ensino e descobrir o monstro que ao longo das três últimas décadas se foi construindo. Na construção do dito monstro (s. M. – do Lat. Monstru – 1. Ser organizado, animal ou vegetal que apresenta conformação muito diferente da que é natural na sua espécie. 2. Animal ou coisa de grandeza desmesurada ... ) participaram, de maneira vária e contributo diverso, os Governos da Nação, os Partidos – os do governo e da oposição – Associações de pais, Sindicatos de Professores, Universidades – Públicas, Privadas e Cooperativas -, Conselho Nacional de Educação, enfim, figuras singulares de respeitável saber. Aos professores coube realizar o que todos os outros sonharam e cuja essência se encontra na (com)sagrada Lei de Bases do Sistema de Ensino de 1986: Educar a todos, em todos os lugares, segundo os mesmos princípios, durante igual período de tempo.
Aquilo que se quis fazer foi um sistema. Porem, os arquitectos eram vários, foram(-se) mudando e aquilo que hoje um programava, o outro desprogramava; aparecia um e acrescentava mais uma disciplina; depois vinha outro e acrescentava uma área; acharam todos que o melhor era alterar todos os programas e aumentá-los a todos. Por exemplo na Filosofia do 12º ano o professor (ou numa perspectiva de democracia avançada, o professor e os alunos) escolhe(m) três obras de um conjunto de 22 obras!, não seja caso que alguma corrente ou proeminente filósofo se veja votado ao esquecimento. Atendendo à liberdade de tudo poder aprender, substituiu-se no Ensino Secundário a Formação Vocacional pela Formação Técnica que dá a cada aluno a possibilidade de satisfazer e explorar os seus interesses – assim um aluno de Latim e História poderá frequentar Técnicas Laboratoriais de Química e um aluno do ramo científico poderá dedicar-se ao estudo da Teoria do Juízo Final, se a sua escola achar de interesse a temática. Para ver como o monstro cresce é preciso estar atentos a todas estas deformidades e excrescências e à proliferação das nomenclaturas de disciplinas e cursos, nomeadamente de engenharia. Passou-se da tese de que as palavras traduzem o mundo para a tese de que as palavras o criam em actos demiúrgicos do fiat lux. Tal é um perigoso jogo quando fora do domínio da ficção e da arte.
Aquilo que se quis fazer foi um sistema, um sistema baseado nos melhores princípios da filosofia leibniziana segundo a qual este é o melhor dos mundos e da filosofia rousseana segundo a qual o homem é naturalmente bom, havendo que cuidar que a sociedade o não corrompa; baseado, enfim, nos princípios (teóricos, obviamente) da igualdade, liberdade e fraternidade e de princípios pedagógicos que daqueles derivem: o direito ao sucesso – para o que devem ser criadas condições. Criar condições foi um dos objectivos do PIPSE da distribuição dos pacotinhos do leite. E assim, se desce dos nobres princípios filosóficos às questões leiteiras. Mas porque nem só de leite são feitas as condições do sucesso, o legislador criou uma peça fundamental: o despacho 98A/92: Peça fundamental do sistema à qual nenhum pedagogo recusaria o seu beneplácito se fosse para aplicar no melhor dos mundos que não é seguramente o nosso: Ninguém mais irá reprovar, ou melhor ser retido, porque a cada aluno irá ser prestado um apoio pedagógico adequado que inevitavelmente o conduzirá ao sucesso. A retenção será um facto extraordinário que só se consumará após o professor, o conselho de turma, a escola terem esgotado todos os recursos. Porém, se a retenção é difícil a retenção repetida só na teoria será possível já que na prática mobiliza tanta burocracia que só um mentecapto lançaria mão de tal medida.
Os professores que já aprenderam a dançar conforme a música também tentaram dançar esta mas não encontraram forma harmónica de a executar. Alguns mais velhos e experimentados disseram: eles tocam a música que quiserem e a gente dança a música que sabe. Foi, então, que o tocador de música, olhando os dançarinos, começou a tocar, num compromisso impraticável olhando ora para a pauta, ora para os dançarinos originando uma trágica comédia.
Foi então, que disseram ser necessário ensinar os bailarinos e que isso nem ia ficar caro dado os fundos europeus para o efeito. Os bailarinos não precisavam, portanto, de pagar. Até era bom haver onde de gastar o dinheiro que não era nosso. Lançaram-se de Norte a Sul, Madeira e Açores acções de formação que dão créditos (mais do que crédito) aos dançarinos com os quais subirão os diversos graus da carreira. Aparecem, de um momento para o outro, mestres de dança de todos os lados: Universidades, Sindicatos, Associações Científicas e Profissionais, e os criados para o efeito os Centros de Associação de Escolas. Os professores mais pelos créditos do que por vontade de aprender a dança vão demandando a oferta, escassa e pouco credível, na esperança de não serem convocados e de sem créditos irem subindo em suas carreiras. A maioria das entidades formadoras não tem quem, de facto saiba dançar, e a maior parte dos professore não quer aprender. Faz-se, então, um exercício de aprendizagem teórica que consiste aprender/ensinar a dançar sem nunca ensaiar um único passo, compromisso em que os professores são mestres com os seus alunos. Cúmplices, mestres e dançarinos, avaliam o próprio trabalho – auto-avaliam-se – esquecendo o provérbio que diz ninguém é bom juiz em causa própria. Desta forma, o monstro se desconhece como tal e não cessa de apregoar as suas virtudes e a sua beleza.
O professor é, na sociedade, quem mais avalia e é, talvez, o que mais horror tem à avaliação. Todos os dias se expõe ao olhar dos seus alunos que lhe conhecem a música e a dança e, no entanto, teme a sua avaliação. Teme qualquer tipo de avaliação que não seja a sua. Quanto mais severo é na avaliação para com os alunos mais teme ser avaliado. Por isso, a classe andava agitada, ansiosa, angustiada com a exigência de um trabalho de índole educacional (com um mínimo de 25 páginas!) para transição ao 8º escalão. Muitos se haviam já resignado a ficar pelo 7º. Foi a melhor prenda que o governo socialista podia ter oferecido: a abolição da dita prova. Quem a fez que a não tivesse feito, que não fosse parvo.